Para o futuro, a esquerda não pode cometer o mesmo erro que cometeu a direita: falar ou governar apenas para o seu reduto ideológico. Será necessário passar da recusa da austeridade ao estabelecimento de um plano alternativo que passe por transformar as relações entre o estado e os cidadãos, no sentido da inclusão social e da autonomização dos indivíduos que dá futuro e desenvolvimento às comunidades.

O jornalismo — como nós todos — vive de fazer sentido das coisas através de narrativas.  As narrativas são às vezes tão fortes, ou tão apetitosas, que se impõem ao sentido das coisas.

Assim foi nesta campanha com a ideia de que estávamos a viver um “empate técnico” nas sondagens eleitorais. Na realidade, não há empate técnico nenhum. A direita toda junta encontra-se muito perto dos seus mínimos históricos, e recolhe em torno de um terço do eleitorado. A esquerda toda junta tem perto dos restantes dois terços. Num quadro em que nenhum dos maiores partidos está próximo da maioria absoluta, o que é importante é saber para que lado pendem a maior parte das vontades eleitorais. Ora, parece claro que os eleitores que estão contra as políticas dos últimos anos são o dobro dos que preferem a sua continuação.

A partir deste equívoco gerou-se uma outra subnarrativa, a saber:

como puderam Pedro Passos Coelho e Paulo Portas perder os seus debates? A questão é mais o contrário: como poderiam eles ganhá-los? Que tem este governo para apresentar em sua defesa? Os 400 mil portugueses que saíram do país? O risco de pobreza que chega quase a um quinto da população? O desemprego que, mesmo nos números ilusórios do governo, é o quinto mais alto da União Europeia?

A direita está neste momento a falar para o seu reduto ideológico; as pessoas que concordam com o diagnóstico do “viver acima dos seus meios” para a crise e com a austeridade para a sua resolução. Mesmo esses, embora aceitando a validade da receita seguida, têm dificuldades em engolir uma série de outras peripécias do governo.

A esquerda, por outro lado, independentemente das suas próprias peripécias, tem ganho os debates não graças à repetição das suas profissões de fé mas por ter fácil acesso a uma realidade palpável e sentida por parte das pessoas: a das dificuldades financeiras, da precariedade, da ausência de oportunidades e dos obstáculos no acesso aos serviços públicos.

A propósito — é justo deixá-lo escrito — esta realidade não se convoca sozinha, e tanto António Costa como Catarina Martins estiveram muito bem ao recordá-la sustentadamente, deixando os seus interlocutores na necessidade de recorrer a Sócrates e a Tsipras para mudar de assunto. O eleitor de esquerda, mesmo que de outro partido, sentiu-se representado.

A responsabilidade que pesa sobre a esquerda é maior, contudo, do que ganhar debates. Ela transcende até o ganhar eleições. A grande questão é: se há convicções tão fortes nas esquerdas, por que não trabalham elas juntas?

Para o futuro, a esquerda não pode cometer o mesmo erro que cometeu a direita: falar ou governar apenas para o seu reduto ideológico. Será necessário passar da recusa da austeridade ao estabelecimento de um plano alternativo que passe por transformar as relações entre o estado e os cidadãos, no sentido da inclusão social e da autonomização dos indivíduos que dá futuro e desenvolvimento às comunidades.

Esse desafio é o mais difícil, e é crucial que venha a ter resposta. Não há muito tempo. Até lá, regozijemo-nos nós à esquerda com a hora de fecho para este governo, na consciência porém de que isso é excelente mas não suficiente.

(Crónica publicada no jornal Público em 14 de setembro de 2015)

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