| Do arquivo Público 15.05.2017 | 

Salvador Sobral recebeu o troféu da sua vitória no festival Eurovisão da Canção e, passado uns segundos, pôs a taça em cima da cabeça. “Como é que eu meto na cabeça que ganhei o prémio, sem deixar que o prémio me suba à cabeça?”, foi o que achei que aquilo queria dizer. A partir daí eu tinha a metáfora para esta crónica. No curtíssimo discurso de vitória, a resposta que ele deu foi sucinta e clara: criticar um mundo de música descartável e apelar a que nos lembremos que a música é conteúdo e sentimento. Como uns dias antes tinha sabido o que dizer sobre a tragédia dos refugiados: se somos humanos, temos que saber ser humanitários. Em três passos nítidos, como em toda a sua apenas aparente simplicidade, Salvador Sobral demonstrou a capacidade artística que tem para se deixar surpreender sem se deslumbrar e para logo encontrar de imediato, intuitivamente, a expressão adequada a essa surpresa.

Como meter na cabeça que se ganhou, sem deixar que ganhar nos suba à cabeça? Essa é uma pergunta que começa a ser necessário responder em Portugal, tal o ineditismo de começar a ganhar em eventos artísticos e desportivos europeus daqueles com que sonhávamos desde que os víamos na televisão a preto-e-branco. Quem pensa que estas coisas tocam em milhões de pessoas para depois não terem significado nenhum está apenas a encenar a sua própria cerebralidade. A verdade é esta: para uma geração de portugueses de hoje, ganhar em dois anos seguidos um europeu de futebol e um festival Eurovisão é tão natural quanto era antes irrealista pensá-lo. Se situações semelhantes encheram de força a França, a Espanha ou Grã-Bretanha, como imaginar que não tenham para Portugal uma importância que exceda o mero acontecimento?

E qual importância será essa? A resposta tem três partes.

A primeira é que com equipas coesas e muito profissionais, que exijam a si mesmas trabalhar a alto nível, é mesmo possível levar boas ideias a ganhar. Não há nenhuma fatalidade que nos impeça de o conseguir, desde que não tomemos a atitude dos génios de prateleira que acham que é obrigação do mundo abrir-lhes as portas à passagem. Para nós como para todos os outros, as boas ideias valem pouco sem esforço para as melhorar.

A segunda ideia é que ganhar por ganhar vale pouco, se não é para acrescentar algo de nós ao mundo. Esse algo pode ser uma maneira de ver ou de estar, um idioma ou uma sensibilidade, ou até as influências que trazemos de outros. Não escapou aos melhores ouvidos que havia algo de indefinidamente brasileiro na música que Salvador Sobral cantou de forma extraordinariamente portuguesa. Ainda bem. É isso que faz do nosso país e da nossa cultura qualquer coisa de tão especial. E é isso que fascina quem quer gostar de nós.

A terceira ideia é que a nossa personalidade deve ser um veículo, sim, mas não necessariamente de narcisismo. Na medida em que exista uma maneira portuguesa de olhar as coisas, formada pela história, a cultura e a geografia, melhor será que essa maneira de olhar as coisas não sirva só para olhar para dentro mas para o que há de universal, na música ou na vida humana.

Por isso, a mensagem é: habituem-se. Não se habituem a que somos os maiores ou que temos de ganhar sempre. Habituem-se a que querendo ter boas ideias bem executadas, querendo saber mais sobre nós mesmos e estando abertos aos outros, Portugal até é capaz de ser feliz na Europa e no mundo.

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