Nunca vi isto: o primeiro-ministro é refugiado, o presidente é um refugiado, todos os deputados o são.

Acampamento de refugiados sarauís - Smara

Smara. – Oficialmente, estou em território da Argélia, mas aqui não se vê uma única bandeira deste país, nem se fala com ninguém que se diga argelino. A cidade mais próxima, Tinduf, é sim uma cidade argelina; mas para lá irem as pessoas à minha volta precisam de mostrar um documento especial de trânsito (apenas elas: nós não estamos obrigados a isso).

Onde estou então? No deserto; longo e único como só nós o vemos.Quem aqui mora tem para ele vários nomes em árabe, ou então usam palavras herdadas das línguas berberes para designar e distinguir o deserto plano do deserto das colinas, o terreno compacto e ocre das dunas de areia.

A tarefa é mais complicada ainda pelo facto de que, a quinhentos quilómetros daqui, há outro lugar chamado Smara. Se fosse possível lá ir, que não é, pelo menos não em linha reta.

Eu explico. Este quadrado do deserto argelino é habitado por refugiados que se dizem – unanimemente, pelo que constato – sarauís. A história que contam é esta: para aqui fugiram quando Marrocos invadiu o seu país, o Saara Ocidental, em 1975 (a história, o direito internacional e até a cronologia parecem quase decalcados do caso timorense: é difícil dar razão aos timorenses e não dá-la aos sarauís). Ao chegarem aqui, instalaram-se provisoriamente em acampamentos, a que deram os nomes copiados das suas terras: El Aiun, Dakhla e, esta onde estou, Smara, cujo nome se inspira na capital cultural do país, por aqui inacessível por trás de uma frente de muralhas, artilharia e minas antipessoais.

O provisório tornou-se definitivo. Esta gente está aqui há 34 anos. Muitos nasceram aqui. Uns esperam regressar ainda, outros desesperam já. Os jovens impacientam-se com a estratégia dos adultos, e até a Frente Polisário – aliança política independentista – admite os seus receios de que a nova geração abandone a tática de resistência pacífica.

Entre os campos de refugiados no mundo que o ACNUR reconhece, esta é uma das situações mais prolongadas, só ultrapassada pela dos palestinianos. Mais invulgar ainda, todas as instituições para-estatais sarauís no exílio estão aqui. Nunca vi isto: o primeiro-ministro é refugiado, o presidente é um refugiado, todos os deputados o são.

Uma geração de homens esteve na guerra, e muitos por lá morrerão. Muitos outros estão ainda na frente do cessar-fogo. Em consequência, as mulheres dominam a paisagem e a vida nos campos de refugiados. Estão por todo o lado, cobertas nos seus panos coloridos. Falam connosco em espanhol; dizem que não tencionam ceder este protagonismo feminino, nem quando o conflito se resolver. Parecem decididas, têm orgulho nas escolas e hospitais improvisados. Entre os homens, em particular jovens, não se vêem os dois sinais comuns dos fundamentalistas em países vizinhos – não há barbudos nem calças de bainha curta, que não podem roçar nos sapatos para não violar os preceitos do Corão.

Há poucas semanas receberam aqui uma visita especial: compatriotas do Saara Ocidental sob controle marroquino, em alguns casos primos e irmãos que não se encontravam desde 1975.

Mas a história não acabou bem: ao regressarem de avião, os visitantes foram presos no aeroporto de Casablanca, Marrocos. Ainda estão detidos numa prisão perto de Rabat, sem acusação e sem visitas. Iniciaram então uma greve de fome que dura há quase trinta dias. Nela são acompanhados por várias dezenas de presos independentistas.

Não são gente famosa nem visível. Para que não acabem em tragédia, precisam de que não nos esqueçamos deles. O fim desta crónica será escrita pelo leitor.

4 thoughts to “Escreva o final

  • José Franco Tavares

    Rui Tavares: Palavras que nos interpelam (O Deserto)

    Já estive no deserto. Foi em 1998 numa viagem à Tunísia. Oito dias em “todo o terreno” durante os quais se encontraram vinte portugueses que muito se divertiram numa confluência de capacidades artísticas particulares que surpreenderam.

    Mas este seria o relato da viagem turística e não conto fazê-lo mesmo se aconteceram coisas estranhas que mereceriam ser relatadas. Vou relembrar as três noites no deserto, em tendas, camas de campanha a dois palmos do chão por causa dos escorpiões, pensei eu. Banho na lama de um oásis. Nestes três dias, fora do circuito comercial e desinfectado dos hotéis, embora no circuito comercial do deserto, vi pela primeira vez homens desse deserto inextricável para os olhos europeus que me informavam. Foi então que gravei na memória imagens e acontecimentos que me permitem compreender a viagem de Rui Tavares (Público de 2010-04-14 – hoje) e ampliar, agora definitivamente, a minha percepção da tragédia humana que vive o povo sarauí. Curiosamente nos três dias no deserto não nos cruzámos com mulheres que agora estão presentes na crónica de Rui Tavares, escondidas então ciosamente, até dos olhares dos turistas, e os homens que apareceram, vindos sabe-se lá de onde (cheguei a pensar que brotavam das areias e se moldavam da lama do oásis) só foram vistos a cozinhar o borrego que nos serviram, e depois, sob a forma de cabeças sem corpo, estes encobertos pelos muros do curro onde nos sentámos para as refeições. Homens tão ressequidos como a carne que nos serviram com umas batatas engorduradas. População autóctone inexistente (não vista, não percebida) durante o resto da viagem. E aqui nestes momentos em que se cruza connosco, também só se deixa ver a prestar o serviço para que foi contratada. Pessoas que não parecem donas de nada, nem das suas vidas e a sua existência como que se esgota nas suas maneiras silenciosas. Parecem executar as suas tarefas à cadência do escorpião absorto. Como nascem, como vivem, quantos anos vivem, como morrem? Impossível não pensar no “Estrangeiro” de Albert Camus ou no livro de Paul Bowles “O Céu que nos protege”, ou nos seus “Poemas” (“No princípio era a lama, e o som da respiração, e ninguém tinha a certeza onde estávamos…”), quando nos indagamos ainda sobre o que pensam, para além da satisfação das suas necessidades básicas. Como os animais, todos os animais que precisam de comer todos os dias e assim, estes homens, nessa luta de vida ou de morte não têm tempo para o pensamento que os humanizará. Não espanta que Paul Bowles “Próximo do Nada” nos relate: “ No ano seguinte havia lutas de facas no estádio/Penso que as pessoas estão prontas para isso, disse o presidente da câmara/ Envolvimento total. Um novo conceito de desporto/ O vencido não abandona o ringue com vida”.

    Para os homens que se sentam na cidade são apenas números que legitimam o seu poder e lhes conferem uma certa importância global. Nunca pensam neles como seres a quem o Estado, que os submete, deva dar algo que a comunidade produza, para os ajudar na sua vida corrente. E não me digam que esses milhões de seres, vivendo nos desertos do mundo, seja na China capitalista de Estado, na África martirizada de Patrice Lumumba (“Llora amado hermano negro en los milénios de muertes bestiales…”), na América do Sul de Salvador Allende como na Índia dos “Intocáveis”, não pagam impostos. Pagam e bem altos quando vendem a força dos seus braços por preços irrisórios, cujos valores só lhes permitem sobreviver (quando permitem). Esses impostos aparentemente não pagos vão incluídos nas mais-valias que os homens de negócios fazem, comercializando o que produzem, seja serviços turísticos que até podem ser os da sua presença folclórica, seja produtos mais palpáveis.

    Sarauís. Porque não os defendemos com o mesmo empenho com que defendemos os Timorenses? Não são católicos nem têm por perto missões religiosas onde vivam religiosos influentes. Estão à mercê dos fundamentalistas da religião e da economia da fome. Excluídos da consciência mundial e até da nossa, aqui tão perto. É por isso que a viagem de Rui Tavares e o seu relato, sucinto embora, conta nesta luta sem quartel que as pessoas, com consciência humana em actividade, travam para a (re)construção da humanidade.
    (Publicado in JN – Blogues do Leitor – Frontal)

  • Manuel C.D. Figueiredo

    O retomado diálogo entre a UE e os países do norte de África não está a dar os frutos desejados. E se outras vozes não se fizerem ouvir, bem alto e rapidamente, os ventos e o calor do deserto silenciarão crimes que a Humanidade não quer conhecer.

  • Catarina

    Rui, acho que é de facto útil e necessário que tragas todas estas histórias, à partida distantes, a todos nós, dando-lhes uma cara. Faz até pensar em tão pequenos que são muitos dos nossos problemas e na indiferença a que submetemos tantas vezes os outros, distantes, do outro lado do mundo…
    continua o bom trabalho!

  • Elizabeth Aparecida dos Santos

    Olá! Gostaria de receber matéria a esse respeito, assim ajudo a outras pessoas entenderem melhor a situação dos Refugiados pelo Mundo.
    Assim, peço a autorização para colocar as matérias em meu Blog, e se quiserem acessem é interessante, ele se chama Blog CONVERSADEMULHERESCRIATIVAS. Tem muita coisa bonita e alegre, mas tem o outro lado da vida, afinal a vida não é feita somente de alegrias, e não é cor de rosa.
    Aguardo uma resposta, ficaria muito contente com um sim.
    Abraços e Bjs a todos.

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