Com três autores — Fausto, Sérgio Godinho, José Mário Branco — o jogo pode ser levado mais longe. Eles tornam-se numa espécie de prisma da história.
Mudou a hora, e um país outonal como o nosso reencontra-se com o seu clima interior. Quem nos vê a partir de fora poderá surpreender-se; afinal o Sol, e o clima quente, e a brisa amena, e a posição geográfica e a língua latina poderá equivocá-lo. Mas nós sabemos que somos um país outonal, introspectivo, melancólico.
No Campo Pequeno, cantam José Mário Branco, Sérgio Godinho e Fausto. A voz do primeiro é densa e não dúctil. A do segundo lúdica e talvez sensual. A de Fausto, talvez a mais delicada, mas nunca simples.
Eles fazem sentido ali naquele palco, pelas suas diferenças também. Qualquer deles tem um temperamento musical e lírico próprio e pouco confundível, notáveis sentidos de observação e interpretação artística (a maior parte do trabalho criativo é observação, memória e só depois a destilação disso); qualquer deles é, não tanto um músico ou compositor ou cantor, mas um autor.
A reunião deles é mais do que uma ocasião de curiosidade ou expectativa. É um momento reflexivo, uma pausa para avaliar as últimas quatro décadas portuguesas, como vistas por estes três autores.
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Há pares de autores que se iluminam mutuamente. Tolstoi e Dostoievski. Chico Buarque e Caetano Veloso. Eça e Camilo. Mais do que escolher um sobre outro (o que é divertido como jogo de salão) podemos encontrar num as ferramentas para ler o outro.
Com três autores — Fausto, Sérgio Godinho, José Mário Branco — o jogo pode ser levado mais longe. Eles tornam-se numa espécie de prisma da história.
As raízes de cada um deles está no fim da ditadura, e na figura quase paterna de José Afonso. Embora a oposição ao regime, que todos partilhavam, ajudasse a tornar mais claro onde situá-los, seria enganoso já então resumi-los como cantores de oposição. Cada um deles retirou dessa experiência ensinamentos diferentes e, com a revolução, cada um deles inventou uma trajectória e foi mais do que uma coisa ao mesmo tempo. Assim de cabeça, foram mais europeus ou africanos, brasileiros ou norte-americanos, rurais ou urbanos. Foram mais intransigentes ou conciliadores, revolucionários ou saudosistas, eruditos ou populares, românticos ou amargurados.
Ou seja, cada um deles foi encontrado a sua voz e caminho nas consideráveis mudanças por que passámos — ditadura, revolução, normalização, europeização, mercantilização, globalização, mediatização, o que quiserem. Seria redutor dizer que é uma história geracional. Seria até redutor dizer que é uma história nacional.
Claro, ao ouvir cada música reencontramo-nos com as nossas circunstâncias — quando fazemos coro para o refrão camoniano e voluntarista de “todo o mundo é composto de mudança” (de José Mário Branco); ou no cansaço sonhador em “leva-me a mim a voar sobre o mar” (em A Ilha, de Fausto); ou na ode à desorientação existencial de “hoje é o primeiro dia do resto da tua vida” (um quase-hino de Sérgio Godinho).
Poderíamos olhar para este espectáculo com o interesse algo folclórico de quem acha em casa um velho álbum de fotografias das últimas quatro décadas. Mas creio que temos aqui um privilégio maior. Aquilo de que se trata, penso eu, é da permanente história humana de como cada um de nós faz o que pode com as circunstâncias que encontra. E essa história decantada pela seriedade com que os autores ambiciosos encaram a arte.
7 thoughts to “Era uma vez três rapazes”
Belíssimo texto.
Diria que os três, garantiram a continuidade do Zeca, prematuramente calado pelos deuses mas também pelos homens.
Mai’nada!
conheço muito pouco deles. infelizmente nasci fora do seu grande alcance, da sua época áurea.
mesmo assim adorava ir, não só pela sua música, mas também pelo que representam…
cumps
ps:. o texto só aumentou essa vontade de ir…
Penso que foram indispensáveis em dada epoca. Hoje, são “passado”. Muitas situações, têm o seu tempo, o seu momentum.
Parece-me que por vezes se fica a querer resolver-se situações actuais, com receitas passadas.E já deu!
Uma opinião………………………..
Augusto Küttner de Magalhães
Como momento reflexivo, acredito que o concerto tenha sido muito bom. Do ponto de vista musical, uma enorme desilusão.
Vi o concerto, mas não posso dizer que o ouvi, pelo menos não na acepção mais nobre da palavra. E estava num excelente lugar da plateia. O Campo Pequeno não serve para aquilo. Alguém devia ter percebido isso antes, que eles mereciam e os preços justificavam.