Esta é provavelmente a primeira Greve Geral para essa geração de há dezassete anos, e para os jovens que vieram depois dela. Estes já não são o trabalhador clássico, mas uma nova mão-de-obra precarizada e subaproveitada — as vítimas do neoliberalismo, e da crise do neoliberalismo.

Em greve - novamente no tempo de Cavaco Silva

Há 17 anos, salvo erro, passei este dia em frente à Assembleia da República, numa manifestação de estudantes contra o aumento das propinas.

Não éramos muitos; mas estávamos determinados a ficar ali o tempo que fosse preciso. Tinha havido um jogo de avanços e recuos com a polícia nas escadarias do parlamento. Eles ganharam. Ao fim da tarde, estávamos arrinconados no pequeno largo cá em baixo das escadarias de São Bento.

De repente, sem dar aviso, avançou sobre nós a polícia de choque. A intenção era limpar o largo, e conseguiram-no. Alguns de nós fugiram pela rua de São Bento. Outros — entre os quais eu — pela Rua do Quelhas. A violência foi inesperada e, mais do que desproporcional, injustificada. Num recanto ajardinado da Rua do Quelhas lembro-me de ter visto em espasmos e com dificuldade de respiração uma miúda frágil e perfeitamente inofensiva.

Portugal não tinha então — e não voltou a ter, valha a verdade — hábitos de repressão policial sistemática e agressiva. Ficámos surpreendidos, embora pouco tempo antes de nós tivesse acontecido com os trabalhadors da TAP. Pouco depois viria a acontecer, de forma mais séria, com os trabalhadores da Pereira Roldão na Marinha Grande. E depois, de forma grave e mesmo criminosa, na repressão aos acontecimentos da Ponte 25 de Abril.

Desde então, muitos governos nossos têm caído, cada um à sua maneira: em fuga ou em farsa. Mas nenhum como esse governo terminou com aquela mistura de agressividade, repressão e teimosia, com um bocadinho de burla e faturas falsas à mistura.

O primeiro-ministro era Cavaco Silva. O ministro do interior era Dias Loureiro.

É curioso ver como parte dos nossos problemas têm as suas raízes naqueles tempos. Quando nos aumentavam as propinas e tornavam os estudos mais caros, os ministros de Cavaco diziam-nos que seríamos compensados com empréstimos bancários. A sugestão era: endividem-se para estudar, antes de se endividarem para comprar casa. Esses estudantes estão hoje sub-empregados ou no estrangeiro, e as dívidas acumulam-se.

O outro lado dessa moeda foi a banca, com a sua mistura de irresponsabilidade, promiscuidade com a política e práticas predatórias — tudo tão bem representado pelo mesmo Dias Loureiro que Cavaco Silva manteve até à última no Conselho de Estado já em pleno caso BPN.

A última Greve Geral convocada por duas centrais sindicais foi em 1988, mais uma vez no tempo de Cavaco Silva, e um dos poucos sucessos da oposição nesses anos.

As coisas mudaram muito entretanto. Esta é provavelmente a primeira Greve Geral para essa geração de há dezassete anos, e para os jovens que vieram depois dela. Estes já não são o trabalhador clássico, mas uma nova mão-de-obra precarizada e subaproveitada — as vítimas do neoliberalismo, e da crise do neoliberalismo.

E esta é também uma greve geral em que não há um único adversário definido. Não basta escolher um primeiro-ministro mal-amado. À nossa frente está uma constelação de ideias erradas, debilidades institucionais em Bruxelas, egoísmos nacionais na Europa, os termos enviesados de uma competição injusta com a China — e as nossas boas velhas dificuldades estruturais.

O sentido de uma greve, no entanto, continua o mesmo. É o povo parar e perguntar — sem os nossos braços que fariam vocês? Para quem governam afinal? Chegou o momento de o usar.

3 thoughts to “Em greve

  • Maria João Bernardo

    O que primeiro me chamou a atenção neste artigo foi a fotografia. Tenho a certeza que não foi tirada na passada quarta-feira. Hoje em dia praticamente só o futebol proporciona esta manifestação de massas…
    às vezes questiono-me sobre se esta “crise” é real ou se é tudo apenas uma questão de expectativas.
    Em Portugal o poder perdura… o povo é brando, vive e deixa viver; desde sempre lhe foi exigido o imposto a troco praticamente de nada; não quer maçar, não que maçar-se nem quer que o macem… até pode saber a função do Estado, pode questioná-la, achar que está a ser mal governado e aceita laconicamente que se não forem “estes” são “outros”. Que é como quem diz “farinha do mesmo saco”. Afinal a ditadura não morreu, transmutou-se apenas…
    Continuo a achar terrível perder eleições por causa de rebuçados e isso está sempre a acontecer!
    Um bem-hajas!

  • Ana Luísa

    Ah!Os protestos anti-propinas da minha geração (por isso alcunhada por Vicente Jorge Silva com aquele epíteto de má-memória que não vou relembrar)… E que fizeram cair ministros da Educação de Cavaco tão visionários (ao contrário) como os inefáveis e sempre saudosos (até pelos clamorosos erros do seu português) Diamantino Durão e Couto dos Santos (entre outros)…
    Ui! Volta Tóni (Guterres)! – Estás perdoado!

  • c.sampaio

    Pergunto-me?
    Onde está a liberdade de expressão, ela existe?

    A principal conquista de Abril foi calada por todos!

    Um sincero obrigado…

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