Não são os partidos que “dão” liberdade de voto aos deputados. São os deputados que têm esse dever constitucional, e a obrigação de dar um cunho de independência e autonomia ao trabalho que fazem. Se as estruturas partidárias aprenderem, de uma forma geral, a não impedir esse processo e até a promovê-lo, estarão a dar razões para que os cidadãos se reconciliem com a democracia representativa.

Não têm faltado ocasiões para deplorar o estado do sistema político-partidário e a pressão negativa que ele exerce sobre as potencialidades da democracia portuguesa. Por isso, quando há ocasião para louvar, aproveite-se.

A semana passada aconteceu uma coisa preciosa. Uma decisão justa foi tomada na Assembleia da República, aprovando um projeto de lei que visava possibilitar que “quando duas pessoas do mesmo sexo sejam casadas ou vivam em união de facto, exercendo um deles responsabilidades parentais em relação a um menor, por via da filiação ou adoção, pode o cônjuge ou o unido de facto co-adotar o referido menor”. É uma decisão justa porque permite ao estado reconhecer laços de família que já existem entre as pessoas, evitando assim padecimento desnecessário e gratuito por parte de filhos, pais naturais e os seus cônjuges, com quem já partilham a vida e responsabilidades parentais. Acautela-se também os interesses do filho, no caso de morte do pai ou mãe natural. No caso de casais de pessoas de sexos diferentes essa possibilidade já existia na lei, pelo que a proposta aprovada também elimina uma discriminação injustificada.

Uma decisão boa, portanto, porque é a lei que deve servir as pessoas, respeitando as relações de familiaridade e interdependência que elas já têm, e não as pessoas que devem servir de instrumentos às teimosias da lei. Nada a acrescentar.

Ou melhor: uma coisa a acrescentar. Pois naquela votação não foi só interessante “o quê” mas também o “como”. A proposta de lei, que tinha como primeira signatária a deputada do PS Isabel Moreira, foi aprovada por 99 votos a favor, 94 contra, e nove abstenções. Os maiores grupos parlamentares, do PSD e do PS, bem como o do CDS, “deram” liberdade de voto aos seus deputados — o que significava que houve deputados do PS a votar contra, ao invés da maioria da bancada, e vice-versa na bancada do PSD, com alguns deputados a votar a favor. No CDS houve algumas abstenções. O PCP mudou o seu sentido de voto em relação a uma votação idêntica no passado recente. No BE e os Verdes, que apresentaram projetos legalizando a adoção em geral para casais do mesmo sexo, não era de esperar que houvesse diferenças entre os deputados do grupo parlamentar.

O resultado foi uma surpresa. Sou de opinião que o mero facto de assim ter sido valoriza a democracia representativa e o parlamentarismo. Faz uma diferença significativa que o resultado final de um processo legislativo não seja completamente previsível só pela contagem de cabeças nos grupos parlamentares. É bom que em Portugal possa ter acontecido ganhar uma proposta de esquerda numa legislatura em que há maioria absoluta de direita. Um dia talvez venha a suceder o contrário, e talvez eu não goste tanto do resultado, mas gostarei do processo. Porque ele dignifica o trabalho dos deputados e leva os cidadãos a estarem mais atentos ao que se passa no parlamento.

Também aqui é importante que a política se adeque aos tempos. Não são os partidos que “dão” liberdade de voto aos deputados. São os deputados que têm esse dever constitucional, e a obrigação de dar um cunho de independência e autonomia ao trabalho que fazem. Se as estruturas partidárias aprenderem, de uma forma geral, a não impedir esse processo e até a promovê-lo, estarão a dar razões para que os cidadãos se reconciliem com a democracia representativa.

(Crónica publicada no jornal Público em 20 de Maio de 2013)

3 thoughts to “E porém mexe

  • alexandre

    É assim que dentro de portas o espiríto europeu e a sua civilização judaico cristã é assasinada lentamente !

    È UMA LEI DOS POBRES DE ESPÍRITO (mas executada com conciência maldosa!

    Porque não por em prática com se descreve:

    “juntem dois boys tipo “esquerda caviar”, “chiquérrimos” de argolas , obtenham os respectivios espermas (terão..?) juntem os espermas “in vitro” agitem bem (tem que ser ao vivo numa dessas manifestações “fracturantes” ) e aí têm com um bocado de sorte, um caviar, dois ou três….

    Haja ..e…..há…muitos por aí…..chiado, principe real, etc…….

    Para a “coisa” sair certa, deviam fazê-lo por exemplo num país islâmico!……isso sim é que era coragem !

    Alexandre

  • alexandre

    A caminho da desagregação da vida humana….na Europa! Continuem é um assunto “vital” para o futuro da UE, como foi a “discussão do sexo dos anjos”…..e viu-se no que aconteceu…a hisiória repete-se sempre! !

    Montpelier-France:

    “Two men have married in the southern French city of Montpellier today, the first same-sex couple to wed in France.
    Vincent Aubin and Bruno Boileau exchanged vows in the city hall before the mayor, relatives, friends and well-wishers.
    The new law came into force this month, making France the 14th country to allow same-sex marriage.
    However, it has triggered heated street protests by conservatives, Catholics and extreme right-wingers.
    On Sunday hundreds of thousands marched in the capital to demand the law’s repeal.
    Last week, one opponent of gay marriage killed himself at the altar of Paris’s Notre Dame cathedral.
    Plans to broadcast today’s ceremony live on a giant TV screen in the plaza outside were abandoned, over fears that hardline opponents of gay marriage could sour the proceedings.
    Officials instead opted to beam the event live online to the city council’s website.”

  • MicaelCM

    Caro Alexandre, andas um pouco paranóico. Esses monólogos delirantes já começam a entrar num estado preocupante. Aconselho Saúde 24.

    Rui Tavares, um dos meus textos preferidos sobre um tema praticamente e estranhamente TABU.
    Bem-haja, MicaelCM.

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