|Do arquivo Público 06.11.2017| Imaginemos que nasce um bebé. Como todos os que vieram antes e depois de hoje, ganha no primeiro dia “um bilhete de graça para andar no carrossel dos planetas”, como chamou uma poeta à vida na terra. Tudo o resto pode vir a ser muito diferente. Não só porque é possível que durante a sua geração o bilhete para andar no carrossel dos planetas permita, pela primeira vez, não estar sempre no mesmo planeta. Mas principalmente porque o planeta onde o bebé nasceu está a ficar cada vez mais pequeno.

Quando for crescendo, o miúdo vai ter todas as ideias dos miúdos que se maravilham com coisas. Que está por detrás da porta quando não estou a olhar? O que pensa o gato? E uma das essenciais: será que do outro lado do mundo, neste preciso momento, está um menino ou uma menina a pensar na mesma coisa em que eu estou a pensar? Será que esse irmão gémeo em pensamento consegue imaginar que eu estou aqui a pensar isto, sem saber que eu existo e como me chamo?

Mais tarde, o miúdo vai esquecer-se que teve esta ideia ou deixar de lhe atribuir grande importância. Sei que é assim, porque

recentemente decidi contar a história desta ideia em debates e conferências, e sempre que o faço há algumas caras na plateia que sorriem e acenam. Estão a lembrar-se de quando eram pequenos. Outras vezes pergunto se a ideia de ter um gémeo do outro lado do mundo lhes passava pela cabeça e há sempre alguns braços que se levantam.

Depois tento explicar que essa ideia infantil foi pensada desde a antiguidade e que está na base de palavras que fomos aprendendo depois: dignidade, democracia, direitos humanos, cidadania. Coisas pensadas por pessoas com nomes nos livros, muito importantes, mas nunca tão importantes que não tenham feito cocó na fralda.

Se se interessar, talvez o rapaz venha a descobrir que a história destas palavras tem sido difícil. Começou por ser comum que “dignidade” fosse uma palavra que se aplicava apenas a um rei ou a um cardeal — e não a todos os humanos pelo mero facto de nascerem. Que a democracia se aplicasse apenas aos cidadãos, e que só uma minoria das pessoas pudesse ser cidadã. Que os direitos humanos não se chamassem direitos humanos e fossem privilégios para apenas alguns, antes de se proclamar que eram, afinal, universais e indivisíveis.

E é aqui que as coisas se começam a complicar. O rapaz nasce num tempo em que há quem diga que a democracia é muito importante mas apenas dentro de certas fronteiras. Que é impossível pensar em democracia sem fronteiras, ou pelo menos sempre demasiado cedo para isso. Nasce num tempo em que, na prática, nascer de uma fronteira para cá é nascer seguro e livre de perseguição. Nascer de uma fronteira para lá é poder ter de vir a arriscar a vida para achar segurança e liberdade. E há muita gente que acha normal essa lotaria do território, como se a lotaria do território fosse menos aviltante do que determinarmos, por exemplo, que um bebé nascido em novembro devesse ter mais direitos do que um nascido em dezembro.

À medida que for crescendo, o rapaz pode passar a dizer o mesmo que se diz à sua volta: que é impossível pensar em dignidade, democracia e direitos para todos, sempre, em todo o lado. Ou pelo menos sempre demasiado cedo para isso.

À sua volta irão aparecendo computadores cada vez mais potentes, autómatos que farão os trabalhos mais complexos, tratamentos médicos que ampliarão a vida humana em muitas décadas, novas formas de visitar o resto do carrossel dos planetas — e continuará a haver gente que lhe diga que dignidade, cidadania e direitos para todos é que é uma coisa muito complicada de atingir. Apesar de não ser mais complicado do que pensar que do outro lado do mundo está alguém a pensar o mesmo que nós, e que essa é a única condição essencial para conseguirmos tratar de viver todos bem neste planeta cada vez mais pequeno. Tudo o resto, aquelas coisas para as quais temos palavras sérias, daquelas de coluna de jornal — taxação e redistribuição à escala global, tribunais internacionais de direitos humanos, parlamentos transnacionais, partilha dos recursos, da tecnologia e do tempo de trabalho — deriva daquela primeira ideia simples. Se essas coisas não forem a missão da geração de agora, não chegarão a tempo das gerações de depois.

De cada vez que dissermos que é demasiado cedo para pensar nestas coisas, lembremo-nos que elas foram pensadas desde sempre. Nunca é, pois, demasiado cedo para as começar a pensar. Apenas pode, se não tivermos cuidado, ficar demasiado tarde para as começar a fazer.

(Crónica publicada no jornal Público em 06 de novembro de 2017)

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