O vídeo de Maitê não me dói enquanto português. O problema é que me dói enquanto brasileiro.

Aqui há dias lembrei-me de uma colega brasileira, A.C., que de entre todas as profissões do mundo logo foi escolher ser antropóloga.

Uma vez, sentados para jantar numa mesquita parisiense, A.C. pediu para beber uma cerveja. O empregado disse-lhe “não temos”. “Não tem cerveja!?”. “Não, senhora. Temos chá de menta, refrigerante…”. “E vinho, pode ser?”. “Não temos nada com álcool, senhora”. “Mas eu quero algo com álcool!”. “Mas isto aqui é uma mesquita, senhora.” “Uma mesquita? Pois eu acho isso um absurdo!”.

E prosseguiu contando piadas sobre portugueses.

A.C. era ecuménica na sua falta de tacto. Certa vez entretinha-se a escarnecer do senhorio judeu que alugava um apartamento à sua melhor amiga, usando de todos os estereótipos cruéis sobre judeus. Não se lembrava que naquele bairro muitos judeus tinham sido assassinados por causa desses estereótipos, nem sequer que a própria amiga com quem falava era descendente de judeus portugueses. Não o fazia por mal. Fazia-o por ignorância. Mas a ignorância é má — e, a partir de uma certa idade, nós temos culpa da nossa ignorância.

***

Esta introdução serve para falar do maior escândalo de todos os tempos da semana passada: o vídeo de Maitê Proença que ficou célebre em Portugal, e no qual, além de repetir todos os estereótipos sobre a suposta burrice dos portugueses, a actriz brasileira cospe no Mosteiro dos Jerónimos.

O vídeo de Maitê não me dói enquanto português. O problema é que me dói enquanto brasileiro.

Nós podemos ser mais do que uma coisa (nós somos todos mais do que apenas uma coisa) e calha que, por circunstâncias várias e importantes na minha vida, eu sou brasileiro depois de ser português (e entre uma coisa e outra sou cabo-verdiano, estranhe quem quiser). Fico contente quando vejo que o Brasil se está a tornar um país cada vez mais importante e respeitado.

E fico decepcionado quando vejo que no Brasil, como em qualquer país grande, auto-suficiente e potencialmente imperialista, há muita gente com uma infeliz tendência para ser ignorante e desrespeitador dos outros.

Conheço Maitê Proença; para ser diplomático, nunca estive interessado em saber que acha ela de Portugal ou de qualquer outro país. É mesmo somente enquanto brasileiro que a atitude dela me faz ranger os dentes. Dá-me a mesma vergonha (admito que irracional) que tenho quando um compatriota se porta vergonhosamente no estrangeiro. A mesma que tive quando A.C. insistia em beber álcool numa mesquita. Ver alguém cuspir num monumento que é património da humanidade, e onde um país resolveu enterrar os seus maiores poetas (de entre os maiores poetas da língua em que escreve Maitê) é como ver o nosso companheiro de viagem querer saltar para o dorso de uma vaca sagrada no Ganges. A blasfémia é menor que o vexame.

Pior do que o vídeo de Maitê, só mesmo o pedido de desculpas de Maitê. Com o ar mais despreocupado do mundo, Maitê dizia que “o brasileiro é assim mesmo” — que bom para os brasileiros que não são “assim mesmo” — e — pormenor revelador — “que o brasileiro brinca até com a falta de nível cultural do Presidente”. Bem, Maitê, você não entendeu nada: o presidente Lula tem nível cultural suficiente para chorar quando sente que o seu país vai passar a ser respeitado. Você, que é actriz e escritora, ri satisfeita da sua ignorância sobre o país dos outros. Não é crime; é liberdade de expressão e deve ser protegida. Mas, quando chegar a superpotência, valha-nos o Brasil de Lula.

[do Público]

9 thoughts to “Desculpas não, Maitê

  • Carmo Romão

    Nem sei que dizer. É assim mesmo que eu penso.
    Julgava que a Maitê fosse se não culta, esclarecida. Afinal não é.
    Paciência. Continuemos a perdoar os pobres de espírito

  • opuma

    Maitê?

    A coisa?

    Tem razão

  • cláudia

    somos todos brasileiros envergonhados com tanta boçalidade.

  • Augusto Küttner de Magalhães

    Caro Rui Tavares.

    Uma vez mais totalmente de acordo com o que escreve.

    Aproveito para dar elevo a duas frases suas.

    “Mas a ignorância é má — e, a partir de uma certa idade, nós temos culpa da nossa ignorância. “
    “Fico contente quando vejo que o Brasil se está a tornar um país cada vez mais importante e respeitado”

    Penso que se deve dar importãncia e relevo a quem o merece, como não e o caso, o melhor é esquecer.
    O mesmo com Saramago, e com as suas permanentes criticas à Bíblia.
    Não sou crente, não me ofende minimamnte, porventura conhecerei mais passagens do 1º e 2º Testamento qe muito Crentes. Mas penso que Saramago não necessita de ir por aí, parece um rabugento, um descontente com a vida.
    Logo ressalvadas as devidas e necessárias distâncias, cada um que fale do que sabe. Quando falarem de outras coisas, é melhor “esquecer”.

    Um abraço,
    Augusto Küttner de Magalhães

  • Leo Carrion

    Rui, se vc concede o poder para uma Maitê fazer juízos de si, como pode depois reclamar do que ela diz?

  • João Cerqueira

    tomo a liberdade de colocar um título no meu comentário:

    Tavares, um brasileiro indignado

    Fico admirado por um homem inteligente como Rui Tavares ter julgado que se proclamasse que era apenas como brasileiro que se indignava ante o comportamento malcriado de Maitê Proença os leitores iriam acreditar.
    Como diriam os brasileiros, essa não cola cara.
    Parece-me portanto uma tentativa rebuscada de se distanciar daqueles que criticaram a cuspidela da actriz _ a única atitude realmente ofensiva no vídeo e que já suscitou teorizações sobre o acto de escarrar, ou não _ sem todavia deixar de expressar o repúdio que sentiu.
    Dito isto, e tendo em conta o referido malabarismo intelectual, aplaudo sinceramente a condenação de Rui Tavares da cuspidela de Maitê num monumento nacional _ poderia um historiador ficar indiferente?_ não pactuando com o coro de opiniões que procuraram não apenas desculpar a actriz, como ainda rotularam de provincianos e bacocos os quem não apreciaram o humor escarrado da senhora.
    Repetisse a actriz a gracinha no museu do Louvre, num dos templos de Kioto, na Estátua da Liberdade, e os provincianos e parolos dos franceses, japoneses e americanos, esses povos tão atrasados e primitivos, eram bem capazes, caso ela não fugisse para o Brasil, de lhe ministrar aulas de boa educação, na cadeia.

  • Victor Oliveira Mateus

    Leo, na pseudo-reportagem surgem-nos juízos emitos explicitamente –
    exº: ” português É esquisito”, “Salazar governou vinte anos”, “Isto é
    um pátio”, etc. O conceito que nos pode parecer marcado por uma certa ambiguidade é o de “esquisito”, mas não nos restam dúvidas que tem, ali,
    uma conotação negativa… Neste sentido eu penso que ela tem todo o direito
    de ajuizar (claro que depois sujeita-se à contra-argumentação!): até pode dizer que a lua É quadrada. Suspeito que “aqui” há sempre o poder para fazer juízos”… O problema é quando uma marioneta não ajuiza e arenga banalidades a trouxe-mouxe – exº confunde cultura com saber livresco e/ou diplomas universitários, confunde humor e brincadeira com achincalhamento de um povo e de uma cultura, etc. Neste segundo sentido até eu reclamo… Emitir juízos ou argumentos (mesmo repletos de falsidades) é uma coisa, piruetas falaciosas, ou um tartamudear desconexo, para esconder o que não é susceptível de ser escondido é outra… Não vejo onde está a contradição!

  • Leo Carrion

    Amigos portugas. Me criei tendo como melhor amigo um filho de portugueses. Considerava este pessoal da “terrinha” e o resto da colônia como minha segunda família. Tenho só motivos para admirar e simpatizar com os portugueses.
    Dito isto, o sentido do meu comentário, que gostaria que vissem como o de alguém que neste está incidente distante da raiva que vcs sentem justificadamente, é que se uma pessoa como a Maitê (que tem como atributos a beleza e um o talento dramático, mas não a cultura ou inteligência, muito menos a discrição), fizer comentários infelizes, não se deveria ter dado a importância que vcs estão emprestando ao assunto. Muito menos personalizar nela “o Brasil” ou “brasileiros”.
    Estão concedendo para a Maitê o poder de julgar coisas muito mais importantes do que ela, e estão concedendo para a opinião dela uma representatividade que não tem.
    Acho que há uma espécie de dor, sensibilidade, “ai ai ai”, em Portugal sobre qualquer coisa relacionada aos brasileiros. É como vc chegar em casa tendo trazido da feira banana quando sua mulher pediu maçã, e logo se ver envolvido em uma discussão com ela sobre o casamento de vcs… Entende? 🙂
    Alguma explicação para isso?

  • ze manel

    Este vídeo diz tudo sobre o assunto…

    http://www.youtube.com/watch?v=xSX3uO7Yw2Q

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