A palavra crise perdeu metade do seu sentido. Crise deixou de ser um momento; passou a ser um estado.

Atenas. — A palavra é grega; a sensação também. Para os gregos antigos, crise era um termo médico. Significado: crise era o momento na evolução de uma doença em que o doente poderia ficar muito pior, ou muito melhor.

Para os médicos modernos da crise, que são os tecnocratas em Bruxelas, os governos de Sócrates a Papandreou, e os comentadores um pouco por todo o lado, a palavra crise perdeu metade do seu sentido. Agora quer apenas dizer o momento em que as coisas estão mal e vão ficar consistentemente pior. Crise deixou de ser um momento; passou a ser um estado.

Visto de Portugal e da minha geração, crise passou a ser o nome da normalidade. No final dos anos 70, se o meu olhar infantil apanhou bem as coisas, a crise era quando o bacalhau deixou de ter preço a que lhe chegassem os pobres ou quando era preciso acordar de madrugada para fazer bicha para comprar um máximo de dois litros de leite. Mais tarde foi 1983 e o FMI, o desemprego e os contratos a prazo, e depois os empregos precários e a desqualificação. Oh, sim, houve uns interlúdios. Mas foram precisamente isso, interlúdios; a crise é o estado a que nos habituámos.

Nem sei quando foi, neste percurso, que passámos a aceitar o papel que nos foi atribuído. É até um pouco perturbador; não consigo lembrar-me de quando foi que nos convencemos de que o máximo a que podemos ambicionar é que as coisas sejam um bocadinho menos más. Desistimos de tentar fazê-las muito melhores. Estamos a falhar.

À vista da Acrópole reune-se uma pequena multidão para um encontro de esquerda. Eu sou um dos oradores, e antes e depois de falar (a “homilia”, como se chama em grego ao discurso e eu inadequadamente divertido para um ateu) vou circulando e conversando. Algumas pessoas querem resistir; outras querem adaptar-se. Das duas formas, é curto: é perder.

Todos se resignaram pois a perder; uns perdem com a cara conformada, outros perdem com a cara zangada, outros perdem fingindo que sorriem, outros ainda perdem querendo levar alguém com eles (uma bomba deflagrou no Ministério do Interior, matando estupidamente um trabalhador). Mas todos aceitam perder.

E no entanto o mundo à volta está a mudar. Sente-se isso nos ossos e nos mínimos pormenores também. Nas livrarias atenienses, mesmo as de aeroporto, o livro que mais vende é o do ministro dos Negócios Estrangeiros — da Turquia. O título é “A estratégia profunda” (ou “Profundidade  estratégica”, ou talvez “Amplitude estratégica”?); nele o seu autor, Ahmet Davutoglu, defende um reposicionamento da Turquia, passando por cima da União Europeia para estabelecer pontes no Médio Oriente ou mesmo mais longe, com potências regionais emergentes como o Brasil e a Índia. Isto segundo as críticas dos jornais: o livro ainda não saiu em língua que eu leia, mas embora seja um calhamaço de seiscentas páginas foi rapidamente traduzido para grego, e os gregos não querem perder pitada do que pensam os seus velhos rivais.

Entretanto, Durão Barroso decidiu fazer comentários sobre os riscos futuros da democracia grega. Esses comentários caíram aqui muito mal e, francamente, a dois passos da Ágora não parecem menos do que ridículos. Se Barroso quer refletir na democracia em risco, poderia começar para a instituição que dirige. Ainda não me parece que os membros da Comissão possam dar lições de democracia a atenienses.

One thought to “Crise!”

  • Carlos

    “Ainda não me parece que os membros da Comissão possam dar lições de democracia a atenienses”.

    Pois é Sr. Rui Tavares, é que por acaso, a democracia ateniense até tem funcionado muito bem… Por isso, é que chegaram à situação que chegaram… enfim…

    O problema da Grécia (que é semelhante ao nosso), é que tem gastou o que tinha e o que não tinha. Isto, tanto a nível privado como público… E depois já não bastava isso, o governo ainda falsificava os dados financeiros, recorrendo a saneamento de bancos americanos.

    De uma forma muito resumida, os Gregos, viviam mergulhados em demagogias e mais demagogias, promessas, utopias desmedidas… por exemplo, nos hospitais era permitido levar medicamentos de borla para casa, eram atribuídos ainda mais rendimentos a quem não quer trabalhar do que os que por aqui se dão, os gregos ate recebiam o 14º mes, etc, resumindo o que se passou na Grecia foi uma fraude consciente e prolongada, que pelos vistos o senhor até deve gostar…

    Por isso Durão Barroso, não foi nada rídiculo, como disse, foi sim consciente e verdadeiro, pois a democracia Grega (e não so) corre sérios riscos de desmoronar.

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