A linguagem vazia dos governantes, quando sentem necessidade de parecer que estão ao controle dos acontecimentos, acabou criando uma sociedade dividida entre crédulos de um lado e incrédulos do outro.

Nessa sociedade as reações são sempre as mesmas independentemente dos factos. Seja como for, o crédulo acredita em tudo o que lhe dizem, o incrédulo não acredita em nada. O crédulo acreditou que Saddam tinha armas de destruição em massa e deixou que se fizesse uma guerra no Iraque por causa disso; o incrédulo não acreditou nos massacres do Ruanda, da Jugoslávia (ou quaisquer outros) e ficaria de braços cruzados à espera que Khadafi chacinasse a cidade de Benghazi. Ambos podem ser, portanto, perigosos à sua maneira.

O crédulo acha sempre que os governantes são, por definição, pessoas responsáveis. A cada “cimeira histórica para salvar o euro” não consegue conceber que os governantes tenham sido ultrapassados pelos acontecimentos ou limitados pelos seus preconceitos, e inventa desculpas para se ter falhado o alvo. Se as pessoas responsáveis fazem coisas irresponsáveis é porque, ao virar da esquina, elas aplicarão finalmente a solução responsável. “É verdade que a austeridade está a destruir as economias de países inteiros”, diz o crédulo, “mas precisamos de empobrecer para poder crescer”.

O incrédulo acredita que os governantes não passam de meros fantoches do “sistema”. Há versões anti-capitalistas, mas também pró-capitalistas, destes incrédulos: para uns o mercado tem todo o poder, para os outros o mercado tem toda a razão.

Tal como o crédulo encontra desculpas para sua passividade porque pensa que os responsáveis vão acabar por fazer aquilo que é certo, o incrédulo não toma responsabilidade por absolutamente nada do que se possa fazer: ele viu tudo, ele já sabia que nada era para levar a sério, ele não deseja envolver-se em nada.

Como parece evidente, tanto o crédulo como o incrédulo se enganam a si mesmos, e aos outros: um finge acreditar para não ter de agir, outro finge não acreditar para não ter de agir.

Uma sociedade perfeitamente dividida entre crédulos e incrédulos é uma sociedade perigosa. Nela, os políticos sem escrúpulos entendem que podem dizer tudo o que quiserem, porque os crédulos são crédulos e acreditam em tudo o que se lhes diga e os incrédulos são incrédulos e de qualquer forma nunca acreditam em nada. Passa então a ser possível, para um político sem escrúpulos, dizer que quer a paz mas procurar a guerra — foi o que sucedeu na Europa dos anos 30.

Só uma sociedade inteira, com uma cultura cívica, pode ser antídoto para os políticos sem escrúpulos; não são os políticos com escrúpulos que conseguem vencer os políticos sem escrúpulos. Um escrupuloso tem sempre menos armas no arsenal do que um inescrupuloso; encontra-se limitado pelos seus escrúpulos e, se decidisse deixá-los de lado, passaria a ser igual ao outro — que assim ganharia duas vezes.

Uma sociedade dividida entre crédulos de um lado e incrédulos do outro não pode salvar-se. Essa seria uma sociedade em que uns achariam que não é preciso fazer nada e outros achariam que não há nada que se possa fazer.

Para nos salvarmos, temos de ser crédulos e incrédulos ao mesmo tempo.

8 thoughts to “Crédulos e incrédulos

  • Ana Cristina Aço

    Discernimento crítico é este meio termo que “nos salva”. Este, envolve a responsabilidade.

  • o credulis axou quia ter pitroil baratuche...

    o incrédulo achou quisto ia tude pá merde em 2006…

    mas tamos em 2012b e nenhum acertou..talvez em 2012d…

    o crédulo viu o pessoal a morrer de fome na etiópia e achou que o que dava ia encher as fomes dessas gentes
    o incrédulo achava que é preciso correr muito para se morrer de fome no mesmo lugar

    kadahfi não chacinaria bengazi podia ter morto mais uns 4 ou 5000 do que matou

    em con trapartida haveria uns 15 ou 20 mil fiéis do regime e familiares de polícias que não teriam sido abatidos como gado

    ou ajustes de contas que limparam 600 vidas por mês desde a libertação

    bateste-me no carro toma lá um balázio nos cornos

    não há revoluções nem revoltas isentas de sangue e massacres póstumos e….

    nem há ocupações sem custos humanos

  • e o Ruanda foi uma Londres mais miserável.

    em que os que pouco tinham chacinaram os que tinham um pouco mais
    para poderem ficar sem nada à mesma….

    irmãos mataram tios e primos para herdarem 1 hectare ou meio-hectare de bananal ou um porco ou uma bicicleta

    em 3 meses houve muitos hutus que se fizeram tutsis
    e muitos tutsis que se fizeram U2

    houve tutsis que mataram tutsis para provarem que não eram tutsis

    e hutus que mataram outros hutus porque o crime era geral e uma catanada ou uma pedrada bem dada dava direito a um rádio de pilhas a uma t-shirt lavável ou com manchas vermelhas
    a sexo fácil para deixar de ter sida…

    ou matar para comer…até porque as pilhagens esgotaram quase tudo em dias

    resumindo: o Ruanda tal como a palestina mais do que uma guerra étnica foi uma guerra por terras (e outros recursos…como malas de viagem vestidos enfim tudo o que se vendesse…ou comesse

  • e o Ruanda foi uma Londres mais miserável.

    o crédulo achou que a França derrubou o Jean-Bedel Bokassa porque já lhe tinha extorquido todas as divisas

    O incrédulo achou que a nova via das tribos rivais ia trazer prosperidade aos povos libertados a tiros de anti-aérea e a golpes de machete…felizmente a república centro-africana já não é um império da demência e da corrupção
    agora é uma democracia quase ao estylo português mas com mais de 1/5 de pobretanas…na realidade evoluiram além dos 5/5

  • e o Ruanda foi uma Londres mais miserável.

    e não crescemos ao empobrecer

    ao empobrecer consumimos menos bens importados porque os dólares do zimba no bué..compram nickles e assis via falta de consumo e exportação de mancarra e de cocaína as élites voltam a ter notas de 500 contos que dão para comprar charutos e cognac

    e os pobres y tanas voltam a ter notas de 50 contos pra comprar ovos e farinha e sardinhas…e de tempos a tempos comprar um telemóvel roubado na feira da ladra ou do reloj…

  • na estrada de gisuma.

    matavam os migrantes das explorações de chá, não porque fossem tutsis mas porque traziam a paga de umas semanas a apanhar ou ensacar folhas de chá…

    quando o estado desaparece ou ataca os próprios cidadãos

    aparecem lázaros e salvadores nas bahias de todos os santos

    é que matar 6 ou 7000 pessoas em montes arborizados com um descampado de 3 metros de largo a fazer de estrada
    não requer batalhões ou companhias

    basta dar largas à cupidez humana

    infelizmente não havia muitas lojas para pilhar por aquelas bandas

    não é um kadahfi que chacina

    ou um Assad que destrói uma cidade de 800 mil almas..

    há necessidade de muitos cúmplices…

  • na estrada de gisuma.

    e o que aconteceu ao euro…aconteceu na Malásia e na Indochina e na Coreia há quase 15 anos

    as multidões malaias e indonésias que destruiram e pilharam durante meses as delapidadas (mas com dívidas externas baixas) economias emergentes ditas tigres asiáticos…ocorreram porque tanto as multidões tal como as suas economias comportam-se caoticamente em tempos de crise

    e a guerra económica é a 3ªguerra mundial do XXI

    as guerras convencionais ou con vencionadas são demasiado dispendiosas
    mais de 1 milhão por afgão morto

    fica muito mais barato ao estylo da bahia…

  • Alexandre de Sousa Carvalho

    Muito bom texto mas a última frase não me parece particularmente feliz, pois sugere que temos que simultaneamente acreditar que nada se pode fazer e que não é preciso fazer nada. Percebendo (ou achando que percebo) que a ideia seja a de que um crédulo e incrédulo quando separados enganam-se a si mesmo mas quando em simultâneo resvalam para uma epifania auto-crítica que o Rui parece sugerir, a ideia de ‘salvação’ não é de qualquer forma garantida.

    De qualquer forma, o texto está muito bom e vou partilhar.

    Cumprimentos.

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