|Do arquivo Público 03.07.2017| 1. O grande dramaturgo russo Antón Tchekov disse-o de várias maneiras diferentes mas sempre com este sentido: “se aparece uma arma no primeiro ato de uma peça de teatro, forçoso é que essa arma seja disparada antes do quinto ato”.

Assistimos na semana passada ao primeiro ato. Um assalto levou de um paiol das Forças Armadas Portuguesas dezenas de armas e explosivos. O que é verdade para uma peça de teatro de Tchekov é mais verdade ainda na vida real: estas armas foram roubadas para ser usadas. Nada mais faria sentido. Ninguém rouba esta quantidade de armas para as manter como recordação. Se foram roubadas no primeiro ato, forçoso é que venham a ser usadas, algures, numa guerra ou num ataque terrorista. A única questão é contra quem, e quando. Nesse dia, para desgraça de nós todos, o estado português terá uma quota-parte de responsabilidade pelo que tiver sucedido. Não falo dos problemas na prevenção e nos defeitos na vigilância. Falo da falta de ação determinada após os ataques. Não se compreende, por exemplo, que não tenha havido controles fronteiriços de emergência para tentar impedir que estas armas saíssem do país.

Se um dia houver um ataque terrorista algures na Europa com estas armas, não faltarão opiniões de quem ache que a culpa tenha sido da liberdade de circulação no espaço Schengen. Infelizmente, não espero que alguma autoridade militar ou civil portuguesa tenha a coragem de repor a verdade: a culpa foi também nossa.

1. O princípio de Tchekov é que numa peça de teatro tudo deve ser levado à sua mais lógica consequência. Eis outro exemplo de como ele funciona na vida real.

Donald Trump, presidente dos EUA, publicou com gozo um pequeno vídeo em que aparece a esmurrar um homem. Trata-se uma encenação que tem já anos, extraída de um divertimento no meio de um combate de luta livre americana. A diferença é que, no vídeo partilhado ontem, há uma montagem que substitui a cara do homem esmurrado por Trump pelo símbolo da estação televisiva CNN. Ou seja, o presidente dos EUA, país poderosíssimo que se orgulha de ter a liberdade de imprensa consagrada logo na primeira emenda constitucional, é um homem que tira prazer de ameaçar jornalistas com violência física.

Se o presidente dos EUA ostenta a vontade de esmurrar jornalistas perante as suas dezenas de milhões de seguidores no Twitter, um dia destes, algures, alguém atacará um jornalista acreditando que essa é uma missão patriótica para “tornar a América de novo grande”. Isto não é alarmismo, mas simples lógica. Tchekov poderia dizer: se o presidente ameaça esmurrar jornalistas, forçoso é concluir que mais tarde ou mais cedo jornalistas esmurrados serão.

1. Lamento, caro leitor, mas isto é como começa mais uma semana neste mundo à deriva. Contra isto teremos de viver. E como viver com isto? 

Aprendendo com quem viveu com pior. Na semana passada morreu Simone Veil, que em criança sobreviveu ao holocausto de um continente mergulhado na estupidez e na crueldade, chegando depois a ser a primeira presidente daquilo que durante séculos pareceu impossível, um Parlamento Europeu eleito por sufrágio direto, como antes fora a primeira ministra da saúde francesa a despenalizar a interrupção voluntária da gravidez. Toda a vida levou tatuados no braço os números que lhe atribuíram no campo de concentração. Toda a vida foi atacada pela extrema-direita.

Toda a sua vida deve servir-nos como um grande ensinamento: o de que é possível sermos maiores do que nós próprios, realizar coisas que durante séculos pareceram impossíveis, contribuir para engrandecer a história humana. Com exemplos como este há de ser possível não só sobreviver, mas mesmo enfrentar e derrotar, tudo o que vier por aí nos próximos tempos.

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