Nunca se ouviu um político dizer, “sabem que mais? eu até gostaria de ganhar; mas na verdade acho que o país se sairá bem se o meu adversário me derrotar”. Nenhuma campanha eleitoral permitiria isso, é claro.

Todos nós somos mais complexos se tomados individualmente do que em interacção com os outros. Quer dizer que as nossas ideias são mais vagas, mais confusas e menos concretas se pensamos despreocupadamente do que quando nos colocamos em conflito. Em conflito, de repente, já todos nós somos certezas, vontades inequívocas e dogmas. Basta haver uma discussão para nos revelarmos assim.

Se nos derem um adversário, nós poderemos até passar a querer o cargo que nunca quisemos, a missão desinteressante, a honraria que na verdade nunca nos disse grande coisa. É o simples facto de estarmos em competição nos faz ir à luta como se aquela fosse a coisa mais importante da nossa vida. Quando conquistamos o que há a conquistar sentimos um certo vazio cá dentro e dizemos: “será que desejei isto? será que faz uma grande diferença tê-lo conquistado?” Mas enquanto queremos a mesma coisa que o nosso adversário, o que precisamos de dizer é “ele e eu não poderíamos ser mais diferentes”.

Não paramos para nos perguntarmos “se somos tão diferentes como pode ser que lutamos pela mesma coisa?”. Não; enquanto se calcificam em nós as certezas sobre as nossas próprias qualidades, o adversário vai já adquirindo na nossa cabeça características cada vez mais condenatórias. Não apenas é importante que consigamos ser eleitos como é (acima de tudo!) necessário que a todo o custo se evite a vitória do adversário. Para o país; para o mundo será uma coisa péssima se ele ganhar, dizemos nós. Dizemos nós, em pleno fluxo de luta e ambição: eu nem faço isto por mim; faço-o porque se o meu adversário ganhar será uma calamidade para terceiros.

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Nunca se ouviu um político dizer, “sabem que mais? eu até gostaria de ganhar; mas na verdade acho que o país se sairá bem se o meu adversário me derrotar”. Nenhuma campanha eleitoral permitiria isso, é claro. Mas muito menos se ouve dizer, “sabem que mais? eu gostaria de ganhar mas neste momento, depois de tanto tempo de competição, já não sei muito bem porquê”. Esse seria o momento em que o político admitiria a sua humanidade final, aquela em que não sabemos exactamente o que queremos nem por que o queremos.

Os Antigos tinham este fenómeno bem descrito e entendiam-no como uma das primeiras verdades da política: a de que o conflito tem tendência a sobrepôr-se ao conteúdo. Acontecia muitas vezes grandes rivais políticos adoptarem cada um posições sucessivamente contraditórias, desde que pudessem continuar a opor-se. É isso que acontece ainda em países com uma política muito fraccionada, como o Líbano, onde os inimigos de ontem podem ser os aliados de hoje (e líderes cristãos que estiveram com Israel passarem a estar com os xíitas e o Irão). Apesar de tudo, a Esquerda e a Direita — quando apareceram no final do século XVIII — introduziram conteúdo nas lutas que antes poderiam ser apenas feudais, entre grandes chefes ou generais.

Num ano eleitoral como este, o conflito vai sobrepor-se ao conteúdo em diversos momentos. Os partidos do centro, mesmo governando de forma semelhantes em muitos casos, vão apresentar-se como se não pudessem ser mais diferentes. Onde o povo de esquerda parece apresentar mais semelhanças, os seus líderes vão também agir como se não pudessem ser mais diferentes, e como se o voto usado no outro partido fosse uma irresponsabilidade, ou uma traição. Tudo isto é, enfim, uma grande banalidade da política e da psicologia humana. Tão trivial que nunca sentimos necessidade de o dizer. Dito há tanto tempo que o podemos até esquecer. Tão esquecido que, afinal, talvez não seja má ideia lembrá-lo.

[do Público]

5 thoughts to “Conflito e conteúdo

  • Augusto Küttner de Magalhães

    Leio-o sempre no Publico, e depois venho aqui ao seu blog. O conteúdo deste artigo, é deveras interessante, “escusada a insinuação PS, PSD, são iguais, mostrando-se diferentes”, dado que é a arma o momento do BE, hoje também dita pelo F.Louçã, na entrevista `J. Sousa!!!
    E perde-se o que de tão interessante “agarrou” globalmente neste artigo, para dar sempre a espetadela!!! Poder-se-ia pensar se o Bloco fosse governo, realisticamene o que iria fazer!!!
    Mas indo ao Seu artigo, muito oportuno referir o Libano, que é paradigmatico.
    E claro, tem toda a razão, evidente : – Num ano eleitoral como este, o conflito vai sobrepor-se ao conteúdo em diversos momentos.

  • Nuno Ferreira

    Gostaria de referir que o artigo é muito interessante e acerta na mouche, quanto à comparação entre PS e PSD, penso que è a verdade, são a face da mesma moeda.
    Continuo a não perceber o medo da mudança de grande parte dos meus compatriotas, antigamente era o papão do comunismo real, este sistema faliu, mas não ouço ecos do medo da extrema-direita xenófoba mais ou menos camuflada que começa a governar as ditas democracias ocidentais, vejam o exemplo da super democrática Holanda, em que certos empregos só são obtidos por holandeses, qualquer que sejam as habilitações, experiência ou competencias dos estrangeiros…

    COmo tal, acho errado pensar que apenas no PS e PSD existem pessoas capazes, o que a vida tem provado e tenho-o sentido na pele, é que os sucessivos governos do PS e do PSD têm optado por soluções ruinosas e incompetentes desde de 1974 e que incluem nepotismo, corrupção, interesses pessoais ou de corporações acima do interesse colectivo e nacional e que normalmente os mais incompetentes são premidados com cargos em empresas públicas e privadas mais ou menos dependentes do Estado.

    COntinuamos a ser o país mais desigual, em que antigamente emigravam as pessoas de baixas qualificações, a estes juntam-se hoje os de qualificação média e superior, porque aqui resta-lhes trabalhar em Call Centers a 500 € por mês.

    Claro que ainda acredito que em ambos os partidos existem pessoas competentes e honestas, mas que infelizmente são minoritárias, grande parte delas se tem vindo a afastar da vida política activa.

  • Augusto Küttner de Magalhães

    Como é mais que evidente de modo algum só o PS ou PSD, é que podem governar: Como infelizmente, é verdade, há extrema-direita a levantar a cabeça, onde não deve!
    E é perigoso. Muito perigoso!
    Mas quaisquer alternativas à governação, tem que ser crediveis, em função da vivência global deste momento. E se todos entendemos que tem havido dificuldades de governação e na governação, convém termos alternativas realistas, sem demagogia, sem ser sempre pela negativa….antes pela positiva!

  • Jorge

    Não percebo de onde vem esta ideia tão disseminada de que este texto se limita a dar a cutucada do costume sobre a indistinguibilidade do PS e do PSD, quando a mim parece evidente que é muito mais lato do que isso, que o Rui se refere a todos os participantes no debate político, ele próprio incluído.

    Claro que o PS e o PSD dificilmente se distinguem (ou talvez se distingam: o PS não tem nenhum Alberto João Jardim), mas não é isso que vem aqui ao caso, methinks.

  • Augusto Küttner de Magalhães

    REPETINDO, PARA SE PERCEBER O QUE SE COMENTA!!!!!!!!!!!!

    O conteúdo deste artigo, é deveras interessante, “escusada a insinuação PS, PSD, são iguais, mostrando-se diferentes”, dado que é a arma o momento do BE, hoje também dita pelo F.Louçã, na entrevista `J. Sousa!!!

    E perde-se o que de tão interessante “agarrou” globalmente neste artigo, para dar sempre a espetadela!!!

    Mas indo ao Seu artigo, muito oportuno referir o Libano, que é paradigmatico.
    E claro, tem toda a razão, evidente : – Num ano eleitoral como este, o conflito vai sobrepor-se ao conteúdo em diversos momentos.

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