Quanto a nós – não-católicos como católicos – pedimos exatamente o mesmo à igreja que pediríamos a qualquer outra instituição: que não branqueie os crimes e que entregue os criminosos.
A recente polémica sobre a pedofilia na igreja representa um estágio – porventura final – de algo que começou há duzentos e cinquenta anos: o processo de fazer da igreja uma instituição igual às outras, dentro do Estado. Identificar esse processo, bem claro no mundo católico quando Roma passou a ser a capital de um Estado italiano e o Vaticano uma cidade-estado ainda que com atribuições “espirituais”, não implica concordar ou discordar dele. Mas implica reconhecer que ele está para lá das fronteiras da “comunidade dos crentes” e que nos implica a todos enquanto comunidade politicamente organizada.
Enquanto pessoa irreligiosa, eu não tenho de ter opinião sobre quem pode ser bispo, tal como não tenho de ter opinião sobre quantos devem ser os sacramentos. Se tiver opinião, sei que será sempre uma opinião sobre um clube que não é o meu.
Como é evidente, porém, eu passo a ter opinião sobre um assunto “meu” quando as regras ou os hábitos de uma igreja (ou de um clube fechado, ou de um partido) têm efeitos sobre a sociedade em torno. Passo a ter opinião – em certa medida, tenho obrigação de ter opinião – quando vejo o trabalho de uma igreja contra a pobreza, o racismo. Passo a ter opinião quando vejo como a igreja dificultou o combate à sida, provocando indiretamente (contas por baixo) milhares de mortes desnecessárias.
E como se aplicam estas fronteiras no caso da pedofilia? Da seguinte forma: as minhas opiniões, por bem-intencionadas ou desinteressantes que sejam, não têm grande peso na questão de saber se o celibato deve ou não ser mantido. Essa é uma questão de “dentro da casa”.
Mas os abusos propriamente ditos não são nunca uma questão de “dentro da casa”, desde logo porque se passaram com menores, e os menores, pela sua situação de vulnerabilidade e de falta de autonomia, devem ser abrangidos por uma espécie de preocupação coletiva pelo seu bem-estar atual. Essa preocupação coletiva é a de que aquelas crianças venham a poder ser adultos felizes no futuro, e essa preocupação é igual para católicos ou não católicos.
É por isso que nesta polémica eu me sinto muito próximo de católicos que dizem basicamente o seguinte: toda a conversa sobre pecado e arrependimento é muito interessante, mas é no mínimo desadequada e no máximo ofensiva das vítimas. O que nós queremos é que a instituição – qualquer instituição – não encubra crimes e entregue imediatamente os criminosos à justiça. E essa justiça terá de ser aquela que julgaria qualquer outro pedófilo e abusador.
Também por isso me sinto muito distante daqueles – incluindo agnósticos conservadores, que têm um reflexo defensivo em relação às instituições conservadoras em geral – que fazem de tudo para contornar esta questão central: atacar a imprensa, comparar a pedofilia dentro e fora da igreja, entrar em análises de vaticanologia aprofundada, fazer leitura a vários níveis de discursos vagos e evasivos de bispos e papas. Basicamente, incorrer naquilo de que acusam os irreligiosos como eu: preocuparem-se com o que não lhes diz respeito para fugir ao resto.
Quanto a nós – não-católicos como católicos – pedimos exatamente o mesmo à igreja que pediríamos a qualquer outra instituição: que não branqueie os crimes e que entregue os criminosos.
Claro que, ao fazê-lo, a igreja perderia definitivamente o seu “foro privativo”. Não tanto porque César – o Estado – ganhou. Mas antes porque ela perdeu, agora dentro de casa, a autoridade que já tinha perdido fora.
Historiador. Deputado independente ao Parlamento Europeu pelo BE (http://twitter.com/ruitavares)
4 thoughts to “César está a ganhar”
A Igreja não pode estar envolta no silêncio. Abafar casos de pedofilia para evitar o escândalo público revela bem o estado a que chegou a Igreja. A justiça divina não pode substituir-se à Justiça dos tribunais. Esta é a verdade.
Caro Rui Tavares
As suas Cronicas no Público voltaram a ser tremendamente interssantes, vale voltar a lê-lo. Parabens
um abraço
Augusto Küttner de Magalhães
Para além de tudo isso, o Papa deve falar sobre esses casos.
Para uma Santidade que diz que a “eutanasia é um crim do homem e outras coisas….”.
Ficamos a saber que o Papa é imortal sem vocação para o lugar.
Nem como homem nem como Santo!
SObre este assunto, mais aqui http://olhardireito.blogspot.com/2010/04/episodios-deprimentes-de-instituicoes.html
Quanto ao “foro privativo”. Todos estão dentro da lei. E a Igreja catolica não pode fugir á regra.
Se formos por esse campo, tambem temos que criticar os deputados por gozarem de certos direitos, como a imunidade parlamentar….. ou também é questão do “foro privativo”?
“Passo a ter opinião quando vejo como a igreja dificultou o combate à sida, provocando indiretamente (contas por baixo) milhares de mortes desnecessárias.”
A cultura permissiva não provoca nada é? Os poucos resquício de conservadorismo comportamental é que se torna culpado dos males do mundo?
“O que nós queremos é que a instituição – qualquer instituição – não encubra crimes e entregue imediatamente os criminosos à justiça.”
Seja, mas as vítimas e relativos poderiam ter-no feito.
“não branqueie os crimes”
Quem é que o está a fazer? Esta na verdade é uma oportunidade para maior ortodoxia na avaliação de padres.
Mas diga-me, se tiver suspeitas de crimes um seu amigo ou camarada, de reputação até aí normal, entrega-o em processo sumário à polícia?
Existirão com certeza erros (incluindo lentidão) de avaliação e do processo (incluindo uma reacção inicial de auto-defesa institucional via discrição, etc, que qualquer organização no mundo sofre também inicialmente a um fenómeno tão grave mas também de certa forma novo) para um fenómeno que afectou padres essencialmente pós-Vaticano II. Engraçada a coincidência, não? Mas a pressa em escalar a “condenação” tout-court a ICAR e o Papa expressa por muitos é uma forma de puritanismo contra um “inimigo de longa data” como outra qualquer.
PS: Diga-me , se a lei é igual para todos, os governantes não deviam estar sujeitos a lei penal (por assassínio por exemplo) quando a seu mando morrem vítimas colaterais num conflito? Se me responde, é diferente para o Estado, deixe de apregoar “a lei é igual para todos”, diga “excepto em caso de assassínio e destruição em massa”.