|Do arquivo Público 10.01.2018| Imaginem que um amigo vos diz que está farto de pagar o seguro do carro e que tenciona deixar de fazê-lo. Vocês poderão responder de várias formas: lembrar que o seguro é obrigatório e a multa pesada, alertar para o facto de que ter um acidente sem estar coberto pode arruiná-lo, ou dizer-lhe que não há problema desde que ele esteja disposto a andar a pé, de transportes públicos ou à boleia. A resposta dele, porém, não se faz esperar: “tu estás é no bolso das grandes seguradoras, seu vendido!”.

O descrito no parágrafo acima resume a essência de uma conversa com os chamados “populistas”. É certo que nem todos os populistas são iguais, mas a conversa é sempre a mesma: o populista começa e acaba com a primeira frase, o primeiro instinto, a primeira reação — e não deixa que se passe daí. Quando pedimos que ele se explique, que nos diga o como e o porquê, quando lhe perguntamos o que vai fazer a seguir, quando pretendemos que a conversa passe da primeira frase para a segunda e a terceira e a quarta — ou seja, que se torne numa verdadeira conversa — já sabemos o que vêm a seguir: um ataque ao mensageiro das dúvidas e das questões, a sugestão de que qualquer crítica só pode significar que estamos feitos com o sistema, etc. Ele está ali para se fazer ouvir e não para responder a perguntas.

É por isso que é importante ir avaliando regularmente o que acontece após as grandes vitórias dos populistas. Curiosamente, — porque será? — nunca são eles a fazê-lo.

Um caso ilustrativo é o do Brexit. Quando os britânicos votaram pela saída da UE, não faltou quem festejasse, inclusive em Portugal, proclamando que no Brexit estava um exemplo a seguir. Desde então, nota-se pouca vontade entre os anti-europeus de fazer o seguimento da história. Façamo-lo então nós.

Os leitores estarão lembrados da Agência Europeia de Medicamentos (EMA, na sigla inglesa), a que Portugal e outros países da UE concorreram assim que se soube que ela sairia de Londres? Pois bem, aquilo de que talvez não se lembrem é que o governo britânico defendeu durante meses que não haveria necessidade de deslocar a sede dessa agência. Sim, a ideia dos brexiteiros era que o mercado da UE pudesse ser regulado a partir de fora da UE. Ninguém fez caso deles, a agência vai para Amesterdão. Ora bem, saiu há dias no Financial Times a notícia de que o governo do Reino Unido se prepara para pedir que a agência, mesmo a partir de Amesterdão, continue a regular o mercado britânico. Pelos vistos, é demasiado oneroso duplicar o trabalho feito para o mercado europeu, como seria demasiado oneroso montar uma seguradora só para cobrir o seguro do meu carro. Grande vitória da soberania, hein?

Mas isto é um detalhe. Mais interessante é o que aconteceu à ameaça de que o Reino Unido pudesse abandonar as negociações do Brexit e sair da UE sem acordo assinado. Para quem não se lembre, esta sempre foi uma pedra-de-toque de todos os teóricos das negociações: se não estivermos dispostos a saltar da varanda abaixo, não conseguiremos que nos deixem ficar com uma parte da casa — e nem adianta perguntar-nos pela falta de lógica dessa estratégia. Pois bem, foi revelada ontem uma carta do Ministro do Brexit, David Davis, para a primeira-ministra Theresa May, queixando-se de que… a UE se está a preparar para o cenário de um não-acordo. Aparentemente, o senhor Davis acha injusto que a outra parte numa negociação se prepare para um cenário que ele anunciou. Mas há mais: na sua carta, o senhor Davis queixa-se de que as agências europeias têm passado a informação de que ao sair da UE o Reino Unido passará a ser “um país terceiro”. Perdão, mas não era essa a ideia?

Pode haver sempre a hipótese de que, tendo com toda a confiança saltado pela varanda, o Sr. Davis levite a meio da trajetória e voe para o topo do prédio. Todavia, não tenho ouvido muitos apoiantes do Brexit levantar essa hipótese. Creio que já terão percebido que a situação é mais parecida com a história do tipo que salta da varanda e a meio da queda diz “até aqui está tudo bem”. Poderão barafustar, mas lembrar que a lei da gravidade existe não é má vontade.

(Crónica publicada no jornal Público em 10 de janeiro de 2018)

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