O que se passou foi que o governo francês mentiu em Bruxelas, e ao mais alto nível.
Viviane Reding, vice-presidente da Comissão Europeia, com a pasta dos Direitos Fundamentais, é uma política conservadora luxemburguesa, bem ancorada há muitos anos na família democrata-cristã, e membro do Partido Popular Europeu, de que fazem parte Durão Barroso, o próprio Nicholas Sarkozy e, em Portugal, o PSD e o CDS.
Por dever de funções, encontro-me com ela quase todas as semanas. Mesmo os deputados que dela estão distantes politicamente — é o meu caso — ou que não gostam dela pessoalmente — não é o meu caso — apreciam a sua franqueza e fala direta. E no primeiro debate que tivemos com ela sobre o caso dos ciganos em França, vários lhe perguntámos porque não era mais clara na condenação do que se estava a passar. A resposta dela foi sempre que — ao contrário do que noticiava a imprensa e afirmavam as pessoas no terreno — ela tinha recebido de vários ministros franceses garantias explícitas de que as deportações em curso não tinham como alvo os ciganos.
O que se passou foi que o governo francês mentiu em Bruxelas, e ao mais alto nível. No fim de semana seguinte foi revelada uma circular interna do Ministério do Interior que declarava por três vezes que as deportações e desmantelamentos deveriam ser dirigidas “em prioridade aos roma (ciganos)”.
Há nisto um duplo escândalo, a que a Sra. Reding fez alusão: em primeiro lugar, um governo que não é pessoa de bem, que mente e não presta informação fidedigna. Em segundo lugar e muito pior, os termos da circular, de recorte racial e preconizando o que é — deem as voltas que derem — uma limpeza étnica. Disse ela que “não esperaríamos ver tais termos usados por um governo europeu após a segunda guerra mundial”.
Reding tem toda a razão: textos oficiais com coisas como “persigam os especuladores, em particular os judeus” (ou, imagine-se, “despeçam os preguiçosos, em prioridade os portugueses”) deveriam estar bem enterrados no passado mais vergonhoso da Europa. Foi contra isso que a União Europeia se fez, e dizê-lo não equivale a dizer que Sarkozy seja Hitler.
Apanhado em flagrante mentira, Sarkozy decidiu fazer um escândalo e declarar que o que tinha sido dito por Reding era uma humilhação ao seu país. Já tinha mandado dizer a um ministro que, sendo a França um “grande país”, não aceitaria lições da Comissão nem dos Tribunais Europeus, seja o da União, seja o de Direitos Humanos, cujos tratados e convenções a França assinou e está obrigada a respeitar tanto quanto os “pequenos países”. E depois mandou um embaixador dizer a Viviane Reding — explicitando que a origem da frase era o próprio Presidente francês — que “se o Luxemburgo quiser pode receber os ciganos todos”. Para quem não quer ser confundido com o nazismo e o fascismo, este tipo de tirada machista e arrogante parece diretamente saída das arengas de Mussolini.
Pelos vistos, a bravata convenceu José Sócrates, que não só se manifestou contra os “excessos” da Sra. Reding, como obrigou a bancada do PS a votar contra uma moção condenado as ações do governo francês. Mais vergonhoso ainda, os “seus” deputados — menos um, Sérgio Sousa Pinto — obedeceram-lhe ou disfarçaram a sua discordância. Nunca aceitarei que um deputado abdique da sua liberdade de voto. Naquele dia, houve infinitamente mais dignidade em ser cigano — escorraçado, mendigo, imundo — do que deputado da maioria na Assembleia da República Portuguesa.
2 thoughts to “A que fala e os que se vergam”
O seu texto “A que fala e os que se vergam” é perturbante.
Pode por favor, indicar o endereço do texto oficial do governo francês onde se encontram as expressões citadas: “persigam os especuladores, em particular os judeus”; “despeçam os preguiçosos, em prioridade os portugueses”?
obrigado.
JME
Se as “citações” do governo francês no artigo do RT não fossem um artificio retórico muito discutível, teriamos que concluir agora que as direcivas europeias também são racistas…
Le Monde 19-10-2010:
La commissaire européenne à la justice, Viviane Reding, va proposer La commissaire européenne à la justice, Viviane Reding, va proposer mardi de renoncer à la procédure d’infraction contre la France, que Bruxelles menaçait d’ouvrir dans le cadre des renvois controversés de Roms bulgares et roumains. Mme Reding estime “suffisantes” les garanties apportées en fin de semaine dernière par Paris, à la demande de Bruxelles, pour modifier son droit national afin de mieux appliquer une législation européenne de 2004 sur la liberté de circulation des citoyens européens, selon une source européenne. “Les travaux d’évaluation de la réponse française sont terminés et Mme Reding est arrivée à la conclusion qu’elle correspondait aux demandes de la Commission”, a précisé cette source.