Os intelectuais podem ser inteligentes mas isso não garante que sejam espertos. A lição que muitos teimam em não aprender é a seguinte: “nunca, mas mesmo nunca, bajular uma categoria de pessoas para aceder ao poder com elas e depois tentar influenciá-las”.
De cada vez que vejo Valentim Loureiro ou Luís Filipe Menezes insultar um “senhor de barbas” que conhecemos pelo nome de Pacheco Pereira, a minha memória viaja até ao fim do cavaquismo e projecta uma cena em que Pacheco Pereira foi o único orador a conseguir acalmar (e ser aclamado por) um congresso do PSD. O que aconteceu entretanto? A maldição dos intelectuais.
Nos idos de 1990, era Pacheco Pereira o único intelectual encartado do seu partido e usava essa qualidade para explicar que o PSD era feito de “self-made men” sem ideologia mas com um pragmatismo e genialidade próprios. Os “self-made men” ficaram maravilhados; amaram-no como ele os amava. Mais tarde, já com o partido na mão, perguntavam-se: “mas quem é este gajo de barbas e por que ainda está aqui a falar?”
O caso era repetido. Muitos ex-esquerdistas já tinham feito o mesmo com os proletários. Cena bolchevique. Intelectual para proletário: “vocês são a classe revolucionária, nós somos a vanguarda”. Anos depois, já em ditadura do proletariado: “quem é este chato de óculos?”. Intelectual: “tu não és um verdadeiro proletário, seu apparatchik”. Ditador de bigode: “tarde demais para ti”.
E assim desde a aurora dos tempos. Séneca ensina filosofia a Nero. Nero manda Séneca suicidar-se. Séneca obedece.
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Os intelectuais podem ser inteligentes mas isso não garante que sejam espertos. A lição que muitos teimam em não aprender é a seguinte: “nunca, mas mesmo nunca, bajular uma categoria de pessoas para aceder ao poder com elas e depois tentar influenciá-las”. O que acontece de cada vez é que a pessoa bajulada acredita nos seus dons e, naturalmente, reage mal quando o intelectual lhe vem dizer o que fazer.
Isto ocorre à esquerda e à direita. Muitos conservadores, que deveriam ser mais cautelosos, exageram na propaganda às virtudes das pessoas mais “instintivas”. Convenceram George W. Bush de que deveria decidir com as entranhas, pois as suas entranhas eram mais argutas do que muitos cérebros juntos. Agora queixam-se de que Bush não seguiu a doutrina conservadora em toda a sua pureza. Não contentes, alguns voltaram a tentar o mesmo truque com Sarah Palin: “pouco importa que ela não saiba que a África é um continente, é uma pessoa simples e directa e muito religiosa e tem uma grande família e o povo gosta dela”. Foi uma questão de semanas até Sarah Palin concluir que não precisava de tutelas; agora já diz que “se Deus me abrir a porta”, será candidata em 2012. Se Deus lhe abrir a porta, fecha-la-á aos bajuladores.
Que deve um intelectual fazer? Ser mais humilde. Entender que não tem mais direitos do que qualquer outra pessoa — se quiser fazer vingar as suas ideias, terá de lutar por elas nos seus próprios termos. Em segundo lugar, ser mais orgulhoso; nunca ceder à tentação do anti-intelectualismo para obter ganhos políticos. Se acredita que as ideias são importantes como causa, deveria também acreditar que elas são importantes como resultado. Está no seu interesse criar um ambiente em que as ideias, mesmo as mais complexas, sejam acarinhadas.
Felizmente, o eleitorado desta vez decidiu que já bastava de ter uma pessoa “simples” ou “igual a nós” na Casa Branca. Ganhou alguém que nunca aceitou fingir que era menos inteligente do que na realidade era. Mas também esperto o bastante para entender que isso por si só não lhe dava direito aos votos de ninguém. E digo isto enquanto gajo com óculos e barba.
[do Público]
12 thoughts to “A maldição dos intelectuais”
Brilhante
Eu também uso óculos e barba, mas sou burro que nem uma porta.
Mas o texto está excelente.
Muito bem 🙂
Brilhante, como (quase) sempre, mas muito injusto para os barbudos e perfeitamente arrasador para os bigodes.
Enquanto estava a ler o seu texto julguei estar a perceber e até a concordar. Mas agora, pensando bem, já não tenho a certeza. Apercebi-me subitamente que não sei exactamente o que é um intelectual. É alguém que lê uns livros e é capaz de defender uma tese com argumentos racionais? Qual é então a fronteira entre o intelectual e o não intelectual? O Louça e o Paulo Portas, pelo menos nos seus melhores dias, parecem ser capazes de fazer isso. Contam como intelectuais?
Questão pungente: mas existem, em Portugal, intelectuais dignos desse «título»? Eu não conheço nenhum.
Excelente (estou a tentar bajular um intelectual).
Ganhou o Obama. «Ganhou alguém que nunca aceitou fingir que era menos inteligente do que na realidade era.»
Obama é do signo Leão, e os Leões nunca fingem nada.
Nunca um Leão fingiria ser menos inteligente do que na realidade é.
Excelente texto, excelentíssima análise.
acontece que a notícia onde o senhor se informou que sara palin não sabia que áfrica era um continente foi uma grande mentira.
maldição de muitos “intelectuais”: nem sequer o trabalho de casa fazerem.
segunda maldição: nunca admitir que estão errados e que o erro foi causado por cegueira ideológica.
….
excelente análise, portanto.
A sarah é mto mas mesmo mto má! Escorregou de Alaska numa tábua! Isto foi percebido por mtos republicanos q se demarcaram!
os porcos do compadre
De outra feita, o malasartes aprontou bela trapaça.
Foram os porcos do compadre que causaram toda a graça.
Malasartes era compadre de um honesto sitiante;a quem tinham enganado de uma forma humilhante.
certa vez um fazendeiro,desonesto e pÂo duro, enganou um tal compadre,que ficou num grande apuro.
PERFEITO!“Desde o começo do peenamsnto documentado os intelectuais nos disseram que sua atividade é valiosíssima. Platão valorizava a faculdade racional acima do valor e dos apetites, e considerava que os filósofos deveriam governar; Aristóteles sustentava que a contemplação intelectual é a atividade suprema. Não é surpreendente que os textos que chegaram até nós registrem essa alta valoração da atividade intelectual. As pessoas que expressaram valorações, que as escreveram com razões para apoiá-las, eram intelectuais acima de tudo. Eles se engrandecem a si mesmos. Os que davam mais valor a coisas diferentes da meditação sobre as coisas usando palavras, fosse a caça ou o poder, ou o prazer sensual ininterrupto, não se preocupavam em deixar informes escritos duradouros. Só os intelectuais elaboraram uma teoria sobre quem era melhor.” Isso é o que deve ser repetido incessantemente.A propaganda cria valores e cria também uma “espiral do silêncio” que envolve a massa (o ser massa, que toma a forma que lhe dão) incapaz e temerosa de pensar, temor este vindo da idéia de que possa haver hostilidade ou desprezo caso por si, caso seu peenamsnto não esteja alinhado àquilo que crê oficilamente valorizador ante o meio, teme não pensar glamurosamente e assim perder o “respeito” do grupo ao qual se insere: Grupos quanto mais corporativos e autobajulantes mais serão atarentes para individuos vacilantes, cheios de receio sobre si mesmos, com pouca autoestima (que vão então busca-la forjando-se inseridos em grupos formados, concreta ou abstratamente, por alguma característica). Assim, desmistificar estes grupos autobajulantes de grande exibicionismo (cuja a voz melhor fazem ecoar) é fundamental para diminuir a atração fascinante que exercem sobre os inseguros e mesmo por aproveitadores e vaidosos doentios.Ha que se desmistificar os faladores. bTodos que dominam a comunicação se dedicam obstinadamente a fazerem propaganda de si mesmos buscando se valorizarem acima dos demais. Vide os “artistas” que propagandeiam ser sua atividade algo mais nobre e que assim atribui maior “valor social” aos que desempenham tal atividade. No fim, aqueles que mais conseguem fazer ecoar suas vozes se unem em mutua bajulação: autores de livros, artistas e professores não se cansam de se vangloriarem mutuamente pois cientes do poder que possuem sobre a massa e sabem não ser conveniente a antipatia entre estes grupos. Mesmo os politicos, que sabem o poder de um professor ou artista, não ousam oporem-se a eles, até concedendo privilégios legais e oficiosos a uns e apenas bajulações a outros. OAbsPedro