Como se desenrascaria Obama no teste do necessário-possível-impossível desenhado por Lula? É cedo para dizer.
Há uns meses, no Rio de Janeiro, ouvi Lula explicar como entendia ele ser de esquerda, ou por outras palavras, como entendia ele a sua esquerda: “é fazer primeiro o necessário, começando pelo mais simples; depois é fazer o possível; logo, logo, o impossível vai estar acontecendo”.
Lula defendia que esse modus operandi o distinguia da esquerda de “à europeia”, que se caracteriza por aceitar as estruturas de poder como elas estão, mas também da esquerda “Chico Alencar”, do nome de um político brasileiro que saiu do PT para fundar o Partido Socialismo e Liberdade, que deseja chegar ao socialismo “de uma vez só” (na descrição de Lula, que talvez não fosse a dos sujeitos em causa).
Lula ia pontuando a sua explicação com exemplos adequados a qualquer pessoa e platéia. Fazer o necessário era começar pelos mais pobres; contrariamente ao que se costuma pensar, fazer política começando pelos mais pobres não é um bicho-de-sete-cabeças. “Na verdade é muito simples”, dizia Lula, “é fazer saneamento básico sempre e só fazer viaduto quando é preciso”. “No passado”, continuava ele repetindo uma das suas bengalas de linguagem que mais irritam a oposição, “os prefeitos só queriam fazer viaduto porque podiam por lá o nome deles e todo o mundo via; não queriam fazer saneamento básico porque corre enterrado e não dá votos. Mas com o saneamento básico feito é menos criança pobre que corre descalça e pega doença; com a bolsa-família é mais criança pobre que estuda; portanto, é muito simples”. Da mesma forma Lula passava para o possível e, concluía, “como vocês estão vendo, logo-logo o impossível vai estar acontecendo”.
O impossível, de certa forma, aconteceu. Quem diria que o Brasil iria chegar a 2010 como uma respeitada potência global? Nos últimos 16 anos a democracia brasileira tem funcionado bem — e lembrem-se que o ponto de partida foi Collor de Mello. Fernando Henrique Cardoso fez também o necessário: domar a hiperinflação. Lula fez o possível: tirar 20 milhões da pobreza. Se Dilma Rousseff no futuro próximo (e talvez Aécio Neves num futuro hipotético) domarem a corrupção e a violência nas grandes cidades — aí está o impossível que nós gostaríamos de ver acontecer.
Como se desenrascaria Obama no teste do necessário-possível-impossível desenhado por Lula? É cedo para dizer.
Desde logo, Obama começou pelo impossível: ser eleito. Fez apenas parte do necessário: a reforma do sistema de saúde. Fez apenas parte de outra parte do necessário: a reforma do sistema financeiro, na qual deveria ter ido mais longe com uma nacionalização-reprivatização de alguns bancos e com um estímulo à economia adequado à dimensão da catástrofe. E fracassou completamente em outra parte do necessário: fechar Guantánamo e limpar os estábulos de Áugeas do complexo militar e de informações americano, ainda dominado pela doutrina do medo que vem de Bush.
Naquilo em que Obama sofreu nesta eleição, pode argumentar-se que foi porque procurou demasiado o centro, permitindo que os seus adversários o caracterizassem como fraco e fugissem ainda mais para a direita.
Mas isso não é causa para nenhum regozijo. Não há Lulas no hemisfério Norte. Quem se queixa de Obama, olhe para a paisagem que temos: Sócrates, Sarkozy, Merkel, Barroso, Cameron e quejandos. Obama está à esquerda de todos, e mais ainda de uma dinâmica política americana ameaçada por um extremismo de direita agressivo e completamente desligado da realidade. Se Obama falhar o teste, pode ser culpa dele; mas o mal será de nós todos.
2 thoughts to “A lição de Lula e o teste de Obama”
É verdade, mas os sistemas políticos são muito diferentes, e o poder nos EUA está muito mais fraccionado. E, sem querer “diminuir” Lula, é forçoso reconhecer que aproveitou uma conjuntura económica brasileira favorável e continuou as reformas de FHC (o Rui até vai a Collor de Melo) que começaram a tirar muita gente da miséria.
E realmente quem olha para os actuais líderes europeus…..
«olhe para a paisagem que temos: Sócrates, Sarkozy, Merkel, Barroso, Cameron e quejandos. Obama está à esquerda de todos»
Depende.
Se pensarmos em esquerda e direita no sentido mais relativo, olhando para qual a percentagem de eleitores nessa conjuntura está mais À direita e à esquerda, Obama estará à esquerda de alguns dos políticos mencionados, mas não por muito.
Se pensarmos em esquerda e direita no sentido dinâmico, olhando para quais as mudanças feitas ao anterior status quo, em que sentido estão a levar a sociedade, Obama estará ao nível dos políticos mencionados. À esquerda de uns, à direita de outros.
Se pensarmos em esquerda e direita olhando para as medidas concretas que se tentam aprovar, ao nível fiscal, militar, etc, Obama estará claramente à direita de Reagan. E à direita de todos esses políticos.
Sim, os muito ricos pagavam muito mais impostos com Reagan como presidente do que pagam hoje com Obama como presidente. As empresas continuam a ter benefícios fiscais quando exportam postos de trabalho. Obama mantém-se no Afeganistão e mantém o calendário de retirada do Iraque de Bush, enquanto que a opção de Reagan foi fugir do Líbano quando essa questão se colocou. Na Europa existe um sistema nacional de saúde, mas os EUA Obama LUTOU contra a “public option” que alegadamente defendia, bem menos radical que um sistema de saúde, ao contrário daquilo que a imprensa europeia dá a entender (havia 51 declarações de voto favoráveis no Senado, e a lei poderia ter passado por “reconciliation” como acabou por acontecer, evitando o bloqueio de 60 votos; mas Obama lutou para que esse diploma não viesse sequer a ser votado, pressionando Harry Reid nesse sentido – é nojento).
Aliás, a reforma de saúde que Obama passou é uma reforma péssima para os cidadãos americanos e para a esquerda, mas óptima para as seguradoras. Antes os cidadãos tinham pouca escolha, ou pagavam os balúrdios exigidos pelas seguradoras, ou evitavam um seguro de saúde. Agora resta-lhes a primeira opção e nada que impeça as seguradoras de exigirem fortunas ainda maiores para cobrirem as pessoas – algo que já estão a fazer, e justifica o resultado desastroso do partido Democrata (além, claro do desfecho do “citizens united”, mas aí Obama pouco poderia fazer).