A sociedade não fica quieta à espera da esquerda e as subidas nas sondagens não duram para sempre.
Sondagem após sondagem, já não vale a pena discutir se há uma viragem à esquerda do eleitorado português. Mais intrigante é tentar saber quais são as suas razões. Já se escreveram editoriais e realizaram debates para responder à questão, e hipóteses não faltam, das mais conjunturais às meramente tácticas, umas melhores do que outras. Esta é mais uma tentativa. Tenhamos apenas em mente que esta subida da esquerda já não é um mero episódio. Logo, não deve ser explicada por razões episódicas.
Se me apontassem uma arma à cabeça e me obrigassem a dar uma resposta, apenas uma resposta, à pergunta “porque tem Portugal mais intenção de voto à esquerda em toda a Europa Ocidental?” eu escolheria a seguinte opção: “é porque Portugal é o pais com mais desigualdades em toda a Europa Ocidental”.
Não é nenhum mistério. Portugal é um país desigual com uma sociedade pouco móvel. A pirâmide social que é preciso subir ao longo da vida é mais íngreme e tem mais obstáculos do que noutros países, e gera uma ansiedade que tem sido menosprezada, quando não escamoteada. Desigualdade e rigidez social, mesmo quando não são explicitamente pronunciadas, estão por trás de muitas das nossas atitudes em muitos campos, da educação à saúde e à justiça. Por isso os portugueses vivem numa permanente desconfiança em relação ao futuro. Com razão ou sem ela, o português — e mais ainda a portuguesa — acha que não pode chegar aonde lhe permitiriam as suas capacidades se não dispuser dos pais certos, dos padrinhos certos ou do cartão do partido certo.
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Isto é um tema de esquerda, mas não quer dizer que só a esquerda lhe possa dar resposta. Em tempos — no tempo do cavaquismo — houve uma resposta de direita à ansiedade social dos portugueses: essa resposta passava pelo mercado, o empreendedorismo e a europeização do país. O eleitorado respondeu-lhe efusivamente, dando maiorias de mais de cinquenta por cento a Cavaco Silva. Mas hoje a direita desistiu de dar resposta à desigualdade, ou simplesmente falhou. E o eleitorado vira-se para outro lado.
É isso, creio eu, que os números das sondagens nos dizem. Não é o caso de, subitamente, dois terços dos portugueses terem ficado encantados com as personalidades de Sócrates, Jerónimo, Louçã (ou Alegre). Pelo contrário, o que o eleitorado lhes diz é o seguinte: resolvam-nos este problema.
Essa é a responsabilidade histórica da esquerda portuguesa. Mas não sabemos se ela vai estar à altura dessa responsabilidade. Como em outras ocasiões, o seu costume é perder-se em questões de dogmas e protagonismos. Se assim for, não tenham ilusões: o mesmo eleitorado que agora vem para o nosso lado passará a procurar as suas respostas em outro lugar. Esse lugar pode ser a descrença e a abstenção, um regresso à direita ou mesmo — a prazo, e como aconteceu noutros lugares da Europa — uma descida feia até à extrema-direita. Mas a sociedade não fica quieta à espera da esquerda e as subidas nas sondagens não duram para sempre.
Se o desejo da esquerda é — como costumam alegar os seus líderes — transformar a sociedade portuguesa, pois o momento aí está. Basta ver o incómodo com que qualquer diálogo à esquerda, mesmo quando diminuto e contingente, é encarado pelo statu quo da política nacional. É que o combate às desigualdades não é apenas uma boa resposta às razões do nosso atraso nem aos sintomas da nossa injustiça. É também uma estratégia transformadora que, se for levada a sério, não deixará incólume o nosso panorama político.
[do Público]
18 thoughts to “A desigualdade”
“porque tem Portugal mais intenção de voto à esquerda em toda a Europa Ocidental?” eu escolheria a seguinte opção:
“é porque Portugal é o pais com mais desigualdades em toda a Europa Ocidental”.
Essa até eu sabia responder.
Por que é que Portugal é o pais com mais desigualdades em toda a Europa Ocidental?
Essa é que é a pergunta que necessita de uma resposta. E a verdade é que ninguém sabe a resposta.
Portugal é o pais com mais desigualdades em toda a Europa Ocidental porque além de ser periférico é onde faz mais calor.
“Não é o caso de, subitamente, dois terços dos portugueses terem ficado encantados com as personalidades de Sócrates, Jerónimo, Louçã (ou Alegre.”
Para compensar esta realidade, dois terços dos colunistas da imprensa portuguesa são de direita. Está certo.
O facto das políticas de Sócrates (mal ou bem) não serem percebidas como “de esquerda” por muita gente é capaz de ser uma das melhores explicações desta situação.
Quanto às desigualdades, não sei. O Reino Unido e os EUA são dois países ocidentais onde as desigualdades são semelhantes (UK) ou muito superiores (EUA) e não creio que sejam países onde o eleitorado está muito mais à esquerda.
E se nos lembrarmos que há 50 estados nos EUA poderemos até verficar o contrário, se não estou em erro. No Texas e noutros estados do interior existem mais diferenças sociais, e o eleitorado vota mais à direita.
Creio que o texto tem algo de razão, e gosto especialmente da conclusão final: aprofundar o debate à esquerda. O que não é difícil, visto que não gosto de nenhum partido em particular, mas identifico-me com as ideias de esquerda em geral.
Mas acredito que a principal razão pela qual a direita está tão menos popular é porque os partidos, aos olhos dos eleitores, caminharam para a direita mais rápido que os próprios eleitores.
«aprofundar o debate à esquerda.»
Aliás, o diálogo. Pode incluir, mas não estar limitado ao debate.
“Por que é que Portugal é o pais com mais desigualdades em toda a Europa Ocidental?
Essa é que é a pergunta que necessita de uma resposta. E a verdade é que ninguém sabe a resposta.”
Eu tenho a certeza que a resposta é esta: é porque tem o Estado maior, a iniciativa privada de facto menos livre, o maior número de leis e regulamentos e um centrão que nos oferece apenas a alternativa entre um PS muitissimo estatizante e um PSD muito estatizante (sendo que as alternativas à esquerda e direita são muito piores).
Esta resposta responde também à questão de saber porque “o português — e mais ainda a portuguesa — acha que não pode chegar aonde lhe permitiriam as suas capacidades se não dispuser dos pais certos, dos padrinhos certos ou do cartão do partido certo”.
Aliás o disparate – perdoe-me o Rui a expressão – deste artigo está em dizer que o cavaquismo queria o mercado, o empreendedorismo e a europeização. E o PS? Não é isso quer quer?
O problema não está em querer, está em fazer. Ou melhor, no caso português, em desfazer: desfazer muitas leis, desfazer grande parte do Estado, desfazer em suma a menorização e desresponsabilização dos cidadãos e da cidadania.
É que o problema, muito mais que a desigualdade, é a pobreza. E o que a “esquerda” de que aparentemente nos fala o Rui (que pelos vistos não quer o mercado nem o empreendedorismo) teima em não perceber é que a riqueza não cai do céu.
“Eu tenho a certeza que a resposta é esta: é porque tem o Estado maior, a iniciativa privada de facto menos livre, o maior número de leis e regulamentos e um centrão que nos oferece apenas a alternativa entre um PS muitissimo estatizante e um PSD muito estatizante (sendo que as alternativas à esquerda e direita são muito piores).”
Errado. França, Itália, Holanda e Suécia, têm um estado maior e um muito maior número de leis. Ah!, e tb têm um centrão.
Sorry, essa explicação não colhe.
«porque Portugal é o pais com mais desigualdades em toda a Europa Ocidental»
Pelo que julgo saber, no Reino Unido o fosso entre ricos e pobres é maior do que entre nós (a despeito, honra lhe seja, das políticas de Tony Blair). O GBCP não parece beneficiar com isso.
“porque Portugal é o pais com mais desigualdades em toda a Europa Ocidental”
Isso é verdade quando nos comparamos com a Europa. Mas se nos compararmos com África, concluimos que Portugal é o País com menos desigualdades.
«Por que é que Portugal é o pais com mais desigualdades em toda a Europa Ocidental?»
Porque, na minha opinião, caro Rui Tavares, Portugal tem o maior défice do exercício da democracia pelos cidadãos, com culpas maiores para os nossos políticos (de todos os quadrantes) que apenas procuram o voto quase sempre através da demagogia, nunca fazendo a pedagogia séria da relação entre eleitos e eleitores.
Não estou certo do que vou dizer, mas acho que uma parte significativa dos nossos jovens além de não votar, considera o exercício dos políticos como uma actividade oportunista para chegarem a lugares muito bem remunerados que, de outro modo, não conseguiriam.
Quanto às variações das sondagens, elas valem o que valem. O Rui lembra-se de algum Presidente da República, de algum Primeiro-Ministro, de algum Presidente Regional da Madeira e dos Açores em exercício de funções e que se tenham recandidatado a um novo mandato não tenham sido eleitos novamente e quase sempre com maiorias reforçadas?
Isto leva-me a uma outra reflexão. Com os jovens que não votam por alheamento, com uma população eleitoral envelhecida e que viveu uma parte do regime do Estado Novo, não será que existe a síndrome de votar naquele que aparenta ter real poder
“Porque …., Portugal tem o maior défice do exercício da democracia pelos cidadãos, com culpas maiores para os nossos políticos …”
Porquê? O que é que Portugal tem de diferente para isso suceder?
Religião católica, clima quente e periferia. É este inultrapassável conjunto de factores que faz de Portugal o pais com mais desigualdades em toda a Europa. Não há volta a dar. Portugal será sempre o país mais desigual da Europa.
Um texto do RT cheio de questões fundamentais.
Gostei de ler a opinião do João Vasco.
Mesmo sem entrar nas políticas de Sócrates percebe-se que este sobreestima a sua popularidade graças a uma maioria absoluta ganha graças ao simples facto de não ser Pedro Santana Lopes.
A sociedade vira á esquerda graças a uma direita totalmente atomizada, um Governo sem plano nem ideologia, com todos os defeitos de todos os governos anteriores na nossa ainda muito jovem democracia.
Todas as contestações mostram mais o cansaço por este “mais do mesmo” do que raiva- para o melhor ou para o pior não nos esperam motins gregos mas uma onda de cinismo e desconfiança da qual resultará campeã a abstenção ou uma constelação de esquerda entusiasmada com ganhos decimais mas insuficientes.
É quase palpável o desespero em procurar alternativas que ofereçam nem que seja um pequeno consolo psicológico (ver MEP) ou um voto de protesto, sem acreditar num projecto de Governo.
Como diz, estou também á espera que uma esquerda multifacetada se organize e queira governar de um modo totalmente diferente.
Por enquanto o optimismo vai substituindo o cansaço…
Muito interessante. Mas passa ao lado de alguns fenómenos cruciais. Nomeadamente o saber se a (elevadíssima e decisiva) percentagem da ABSTENÇÃO actual é mesmo neutra, ou se não é potencialmente (muito) de Direita (ou de Esquerda).
Já o João Vasco lembrou, e bem, que o eleitorado P. S. dificilmente se pode qualificar (todo) como “de Esquerda”.
Mas o mais importante de tudo é mesmo o saber qual a relevância que tem ainda, hoje em dia, falar de “Esquerda” e de “Direita”. Parece-me a mim, que não quero ficar “preso” a uma geração, nem a um quadro mental histórico, que esta distinção datada se esbate mais e mais a cada dia que passa e que explica, de ano para ano, cada vez menos a realidade política.
Quanto a mim, o conflito Direita-Esquerda clássico do nosso tempo histórico está terminado. A vitória (claríssima) foi… do Centro.
A pouco e pouco estão a germinar as novas confrontações e os novos conceitos que darão corpo à próxima incarnação da eterna luta Esquerda-Direita, mas ainda não estão suficientemente perceptíveis, pelo menos para a generalidade dos curiosos deste apaixonante fenómeno, que somos todos nós.
Para já, interessa mais saber quão de “Esquerda” se poderá mesmo qualificar hoje o P. S. e até o P. C. P., cuja praxis e linguagem actuais se aproximam, descaradamente, do P. S. D. (e vice-versa, claro).
Para ver claro algum farol no meio deste nevoeiro, será talvez necessário voltar à pureza do raciocínio objectivo, retirar as lentes ideológicas que, por desgaste e uso excessivo, deturpam a visão e tentar interpretar a realidade politico-partidária portuguesa sem preconceitos nem deslumbre pelas aparências, que muito nos podem iludir…
Eu, observador disto há trinta e tal anos, perplexo me confesso com o momento actual português…
Não me parece que o alheamento e o voto por interesse sejam apanágio dos jovens, como diz joão Gomes.
Aliás, noto entre os da minha geração (bom…como tenho 29 anos já não serei muito jovem!) um interesse e uma vontade de perceber a política e intervir no processo democrático.
O problema da não-intervenção, do absentismo e do alheamento existe, no entanto! Mas grassa por toda a população…pelos idosos que acham que já não têm um contributo útil; pelos ricos e abastados (pois é muito desagradável interromper o fim de semana na casa de campo só para ir votar); os trintões-quarentões que preferem perder o seu tempo a negociar mais um crédito e sim, os jovens por às vezes não se aperceberem que andam neste mundo.
Resumindo, a questão é tranversal.
Eu com quem estou desencantado e com este Zé que afirmava “Eu tenho a certeza que a resposta é esta: é porque tem o Estado maior, a iniciativa privada de facto menos livre, o maior número de leis e regulamentos e um centrão que nos oferece apenas a alternativa entre um PS muitissimo estatizante e um PSD muito estatizante (sendo que as alternativas à esquerda e direita são muito piores)”.
Pobre! Parescia que nos falava com tanta solvencia ater chegar o comentarista seguinte…
Esquerda? Onde?
caro Rui Tavares, sou um comissário brasileiro – apaixonado por Portugal e vivo cá há muitos anos. Leciono história da arte e gestão cultural. Foi com imenso pesar que li sua crónica do Público – Em que posso vos ser útil?. Fiquei realmente triste com esta ausência anunciada. Compro o jornais todos dias e vou directo a última página a procura de suas crónicas – sempre vivas e interessantes nas abordagens isentas. Como poderei passar meses sem o ler nas páginas do Público? e como poderia continuar as discussões com os alunos em salas de aulas? suas crónicas sempre ajudam-me nas conversas com os alunos e com os amigos, alguns deles que partilhamos, mesmo sem nos conhecermos. Sinto saudades das crónicas do saudoso amigo Prado Coelho, e esta mais agora! Espero que seja apenas alguns meses, mesmo sua ausencia do Público 2009. Meus sinceros votos de um ano repleto de realizações.
Um abraço.
Paulo Reis
Rua da Paz, 38. 1º Direito. 12.000-322 Lisboa. Portugal.