A mesma Europa que manda cortar nos salários e pensões prepara-se agora para implorar aos bancos que aceitem o nosso dinheiro, ilimitado e sem condições.

Lembram-se daquele slogan dos anos 90, “as pessoas primeiro”? Em 2011, encontrou um novo sentido: as pessoas lixam-se primeiro.

Escrevendo ontem neste jornal, o economista Paulo Trigo Pereira perguntava “onde estão as gorduras” do estado que este governo apregoava ir cortar, e dá um início de resposta: “afinal, «gorduras» eram só salários e pensões”. Outro economista, João Rodrigues, confirma que “com este Orçamento, todos saberão o que são as «gorduras» do Estado: salários, pensões e bens sociais, da saúde à educação, amputados; a vida de tantas famílias injustamente fragilizada”. A amargura é justificada: na hora de cortar, os governos escolhem as pessoas primeiro.

Não é assim com os bancos. Os bancos salvam-se. E se alguém ainda acha que isto é um exagero, bastará esperar uns dias para ouvir os clamores exigindo uma recapitalização dos bancos europeus (que estão insolventes, como até há pouco ainda era negado). O economista japonês  Richard Koo sugere os seguintes passos aos estados europeus: prestar garantias para todos os passivos dos bancos; preparar uma injeção de capital de limites indeterminados — os suficientes para impedir uma ou mais falências soberanas de “secarem” os bancos; e usar estas injeções de capital como primeiro, e não último, recurso. Mas esperem, há melhor! Para convencer os bancos a aceitar o nosso dinheiro, estas injeções de capital devem ser feitas sem condições: nada de cortes nos bónus e salários dos banqueiros, nada de entradas dos estados nos conselhos de administração, e nada de nacionalizações.

A mesma Europa que manda cortar nos salários e pensões prepara-se agora para implorar aos bancos que aceitem o nosso dinheiro, ilimitado e sem condições.

Aconteceu, aliás, uma coisa curiosa entre aqueles anos 90 e a nossa época.

Antes, os mercados financeiros eram os maiores defensores da globalização e gabavam-se de poder viver num mundo sem fronteiras nem estados. Mas hoje, sem estados nem governos, os bancos não se aguentariam.

Por outro lado, os movimentos sociais eram anti-globalização nos anos, evoluindo depois para alter-globalização (“outro mundo é possível!”). Hoje, arrisco dizer que estes são movimentos da demoglobalização, ou seja, de defesa de uma democracia à escala global. E não defendem apenas uma democracia política, mas económica e social também.

Nos “indignados” europeus, nos “ocupas” dos EUA, até nos estudantes chilenos (que encontrei ontem, e tive oportunidade de ouvir) há uma coincidência notável em três temas cruciais:

1. é possível, e absolutamente vital, inverter a relação de poder entre os estados e a finança capitalista.

2. o sistema político-partidário falhou nessa missão — mesmo os partidos de oposição, que podem ter razão no conteúdo, mas que insistem na forma e na maneira autoritária e hierárquica de fazer política.

3. se o sistema financeiro sequestrou os nossos governos, os povos do mundo terão de contar uns aos outros — e hoje estão mais informados e interligados do que nunca.

Têm razão nos três pontos, e na abordagem global que preconizam. Não será enfiados no nosso cantinho que conseguiremos acabar com os offshores, implementar uma taxa tobin ou domar o sistema financeiro para pôr, agora a sério, as pessoas primeiro.

3 thoughts to “A demoglobalização

  • C. Medina Ribeiro

    Duas dúvidas em relação a este texto:

    1 – Logo no início, onde se lê «Escrevendo ontem neste jornal (…):
    Que jornal?

    2 – «Por outro lado, os movimentos sociais eram anti-globalização nos anos [quais?] (…)»

  • Augusto Küttner de Magalhães

    Mas, tambem não será com manifestações que chegam ao nivel do que aconteceu em Itália e em Atenas, já não se deve ir pela via de partir tudo.
    Antes, dando ideias, concretizaveis, dando sugestoes, apontando caminhos novos.

    Como é evidente se assim continuarmos , vamos a caminho de uma terceira guerra europeia, (mundial?), mas não deve ser começada pelo indignados, mas antes pela senhora da Alemanha, que se esqueceu do que Hitler fez…

    Logo a via alternativa tem que ser construtiva!!!

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