Nos últimos anos transferimos grande parte da capacidade produtiva mundial para um regime que parece estável mas que é sobretudo opaco. 

 

Novidades velhas: a bolha americana, a crise chega à Europa. Mas quem quiser mesmo viver ansioso deve começar já a preocupar-se com a bolha da China.

 

Um economista de direita, Tyler Cowen, descreveu há tempos dois cenários para o futuro desta crise. O optimista: dois anos de recessão. O pessimista: dez anos de depressão global. Na verdade, deveríamos chamar-lhes o “cenário mau” e o “cenário muito mau”. E mesmo o cenário muito mau poderia transformar-se em cenário péssimo — se rebentasse a bolha da China, que o economista não descrevia, mas que vulgarmente se subentende da seguinte forma: os EUA e a Europa deixam de poder importar tantos produtos chineses por causa da sua recessão, levando a China a importar menos matérias primas ou até a falhar pagamentos por elas. Um primeiro sinal seria este: se a China não tiver quem lhe compre os produtos, e uma vez que o seu mercado interno é ainda reduzido, terá de tentar explorar outros mercados para compensar as perdas. Confere com o título da Folha de São Paulo, ontem: “China busca América Latina para manter expansão”.

 

Não faço ideia sobre a probabilidade de rebentar a bolha económica da China. Esperemos que seja pequena — como esperámos com todos os sucessivos cenários pessimistas que se foram confirmando nos últimos meses — e que não ocorra no curto prazo.

 

***

 

Mas o que me preocupa mesmo é a bolha política da China. Nos últimos anos transferimos grande parte da capacidade produtiva mundial para um regime que parece estável mas que é sobretudo opaco. Nem toda a gente fica contente, e muita fica até desempregada, mas na verdade este estado de coisas tem sido confortável para as partes envolvidas. Nós ganhamos produtos baratos que ajudam a disfarçar os nossos rendimentos estagnados. Eles ganham em crescimento económico e capacidade para anestesiar o descontentamento interno. Toda a gente parece ganhar, até um dia — e quando toda a gente parece ganhar até um dia, estamos perante a primeira característica de uma bolha.

 

A outra característica da bolha é que ninguém sabe quando vai rebentar. A incerteza impede-nos de a esvaziar a tempo. E aí chegamos a um ponto crucial: a opacidade é tão grave nas empresas como nos regimes políticos. Uma democracia é previsível porque é maleável. Uma ditadura parece previsível porque é rígida. Na verdade, é mais de quebrar do que de torcer. Olhem para o regime chinês: todos nos garantem que dali não virão surpresas. Mas será? Quando nos apercebermos que andámos a transferir grande parte da produção mundial para um regime que ninguém sabe como se comportará daqui a dez ou vinte anos, a insegurança é capaz de a tomar conta. Se o crescimento económico diminuir por lá, o descontentamento é capaz de tomar conta. Em tempos, tivemos oportunidade de moderar a bolha, exigindo à China uma fasquia mais elevada de respeito pelos direitos dos trabalhadores e pelo meio ambiente. É natural que alguns líderes mundiais voltem a falar agora nessas exigências, mas pode ser demasiado pouco, demasiado tarde.

 

Dir-me-ão: a China parece sólida. E eu direi: sabem o que mais parecia sólido, aqui há uns anos?

 

[do Público]

2 thoughts to “A bolha da China

  • Fernando Penim Redondo

    A palavra “bolha” aplicada à China revela o preconceito que depois se materializa em “Eles ganham em crescimento económico e capacidade para anestesiar o descontentamento interno”.

    Não há bolha pois o desenvolvimento da China é feito com produtos reais e não com produtos financeiros virtuais. O “descontentamento interno” não é anestesiado mas sim resolvido quando as pessoas começam a ter meios de vida decentes.

    A argumentação deste texto é baseada numa ideia infalível: “se nos enganámos uma vez podemos voltar a enganar-nos”. Brilhante.

    Pelo sim pelo não talvez valha a pena considerar que a China tem reservas suficientes para estar dois anos sem exportar mantendo o mesmo nível de importações. A hipótese é absurda mas ajuda a perceber a proporção das coisas.

  • Pedro

    Rui Tavares,

    quando diz:

    “Em tempos, tivemos oportunidade de moderar a bolha, exigindo à China uma fasquia mais elevada de respeito pelos direitos dos trabalhadores e pelo meio ambiente.”

    está a referir-se a que tempos?

    Sinceramente não sei como é que alguém pode exigir à China o que quer que seja; nem agora e muito menos no passado.

Leave a comment

Skip to content