As pessoas aqui estão saturadas, impacientes e desconfiadas. É o que me dizem. Mas não as ouço dizer que estão optimistas. Saturadas de eleições e política, sim. Há dois anos que isto dura e há vários meses que não se fala de outra coisa. Impacientes, também. As eleições são já amanhã, para o melhor ou o pior. E há uma porção demasiado grande de gente desconfiada que pensa que as duas últimas presidenciais foram fraudulentas, e que lhes vão roubar esta eleição também, e que ainda antes do seu candidato ganhar já há provavelmente um maluco, ou mais do que um, que pensa assassiná-lo. Os menos paranóicos sabem, mesmo assim, que o próximo presidente tem um país de rastos para governar: entrando numa recessão, sempre com uma guerra ainda por ganhar e a outra já perdida, e pouco respeitado pelo mundo fora. Tanta gente desconfiada não pode ser saudável para uma democracia.

 

Agora, optimistas — não. Ninguém o admite. Pelas boas regras do jornalismo, tentei e não consegui que me confessassem o optimismo deles. Não tenho nenhuma fonte, nem uma citação, mas eu sei. Eles estão optimistas. O mais próximo a que cheguei foi conversando com o mecânico da Avenida Halstead, esquina com a rua 100, na empobrecida Zona Sul de Chicago. “Não estou optimista”, disse com um ar sério mas sabendo que estava a mentir: “eu não acho que o Obama deve ganhar — acho que ele TEM de ganhar!”

Esta é a terra do Senhor Obama. Em dezenas de quilómetros cumpridos vi apenas uma janela com um cartaz de apoio ao seu rival John McCain. Muita gente aqui conhece Obama, ou acha que se lembra dele, ou comporta-se como se fosse seu próximo. No sector abastado da Zona Sul muitos são vizinhos dele. Há polícia por todo o lado e as ruas estão fechadas ao trânsito. Eles parecem felizes com isso, e não pouco orgulhosos. E como esperam sentir-se na quarta-feira, depois das eleições? “Venha falar comigo nesse dia”. Outra resposta: “eu digo-lhe como vou estar na quarta-feira: aliviado por isto chegar ao fim”.

 

Esta é a terra do Senhor Obama, o homem que não tem terra. Sim, é verdade que muita gente o deve ter visto por aqui. Há vinte e cinco anos mudou-se para esta cidade, vindo sucessivamente do Hawai, da Califórnia, de Nova Iorque, trazendo os genes brancos do Kansas e negros do Quénia. Vinha para trabalhar como “organizador comunitário”, e andava por aqui nas escolas e nas igrejas e nas ONGs (o nome ainda não fora inventado). Se não abrisse a boca não daria muito nas vistas. Mesmo hoje, da rua 60 para sul praticamente só se vêem negros, e visto de fora ele era negro como os outros.

 

Visto de dentro pode dizer-se que era alguém à procura de saber que coisa era essa de ser um negro “como os outros”. Em Chicago ser negro quer dizer transportar consigo a memória da escravidão e da segregação racial. O pastor Charles G. Hayes, fundador da Igreja Casa Cosmopolita da Oração, é um exemplo. Falei com ele anteontem e contou-me como fugiu do Alabama com 18 anos, em 1953. Razões não faltavam: dez anos depois de sair da sua cidade-natal, Birmingham, racistas brancos fizeram explodir uma bomba numa igreja, matando quatro meninas, para manterem o privilégio de se sentar nos lugares da frente nos transportes públicos. Para o pastor Hayes, Chicago não era uma escolha mas uma saída, talvez a única desde que os escravos para aqui tinham fugido no século XIX.

 

Para Obama, Chicago era uma escola para aprender enquanto adulto as memórias com que os negros daqui nascem à partida. O pastor Hayes não se lembra de ter conhecido Obama nesse tempo. O homem que está ao seu lado, sim. É um homem grande, com uma voz potente; os seus lábios tremem enquanto fala. O nome que dá a si mesmo é Bispo Greg e conta-me que tem o dom da profecia. “O meu pai era o baterista de Muddy Waters; morreu assassinado. Antes de ele morrer, vi-o na minha mente dentro de uma urna de prata e foi a minha primeira profecia. Contei à minha mãe. Quando eu vi Barack Obama eu soube logo o que ele ia ser. Uma vez, já ele era senador, Deus disse-me para falar com ele e eu falei durante vinte e cinco minutos, e o Senador Obama escutou-me.” O Bispo Greg continua a profetizar: “você é historiador?”, pergunta-me ele. “Foi Deus que o enviou aqui para falar com o pastor Hayes. Se você é historiador, escreva esta história. O pastor Hayes é um homem de Deus.” Acto contínuo, o bispo Greg ajoelha-se e beija a mão ao pastor Hayes. Depois baixa a cabeça até ao solo. Depois deita-se completamente no chão, prostrado, e fica ali um minuto rezando agarrado aos pés do pastor Hayes. O pastor Hayes diz-me “quem o vê assim diria que ele é muçulmano, mas não, é um bom cristão”. E depois acrescenta baixinho, só para mim: “o Greg já apanhou muita pancada da polícia”.

 

O Bispo Greg levanta-se e recomeça a profetizar sobre o fim do mundo, com uma enorme segurança e profusão de dados. Pergunto-lhe se está optimista para as eleições de terça-feira. “Não sei”, responde, “pergunte-me na quarta-feira”.

 

Da rua 59 para norte é Hyde Park com a sua classe média (branca e negra) e a Universidade de Chicago com os seus oitenta prémios Nobel e uns poucos milhares de alunos (quase todos brancos). Tecnicamente ainda é Zona Sul, mas na prática é outra coisa; não se trata já de segregação racial mas é pelo menos uma regularidade social com expressão geográfica.

 

Politicamente, Barack Obama é um produto destas duas metades. Na Zona Sul ganhou credibilidade e vínculos. Em Hyde Park, para onde foi morar depois se ter doutorado, casado e encontrado emprego (como advogado e professor universitário) encontrou os financiadores sem os quais uma campanha política é impossível nos EUA. A polarização de Chicago parece ter funcionado a favor dele: era o político em quem os negros confiavam e de que os brancos não desconfiavam. Ou será ao contrário?

 

Vale a pena explorar um pouco esta ideia. Ser coisas diferentes para pessoas diferentes é o talento de base do político; qualquer um consegue fazê-lo. O que é um talento raro, beirando o génio, é conseguir ser coisas diferentes para pessoas diferentes sem deixar de parecer sempre a mesma pessoa. 

 

Os seus adversários tentaram atacá-lo pela Zona Sul, insinuando até que um “organizador comunitário” pouco mais era do que um membro de gang. E tentaram atacá-lo pelo lado intelectual, como um elitista arrogante e aburguesado. Grave erro: nunca se deve atacar alguém por todos os lados se eles são contraditórios e cada ataque anula o outro. A coisa ainda pode funcionar se o adversário for instável e sem personalidade definida. Mas Barack Obama parece sempre a mesma pessoa até aos limites da paciência humana. Por exemplo: fala tanto de mudança, e há tanto tempo, que é incrível que não se tenha aborrecido.

 

Os republicanos tentaram fazer de Obama um homem esquisito, com a algo a esconder, uma espécie de Dr. Jekkyl e Mr. Hyde. Era o Sr. South Side que escondia o Dr. Hyde Park, ou vice-versa? O problema é que eles fazem sentido juntos. Se não houvesse já uma via de comunicação entre brancos e negros em Chicago, se não houvesse um Hyde Park misturando já as classes médias de ambas as comunidades, e colocando os universitários pelo menos em linha de vista dos pobres da Zona Sul, nem a personalidade mais conciliadora conseguiria ganhar apoios em ambas as comunidades. Já havia aqui algo em andamento.

 

Talvez se entenda melhor isto com uma história final. Há quatro dias, numa loja de telefones, conversava comigo um jovem negro chamado Hakim. Começou por dizer que estava feliz por Barack Obama ter chegado tão longe e que tinha orgulho em ser da mesma cidade que ele. Notem isto: eu esperava que ele dissesse que tinha orgulho em Obama por ser negro. Uma pessoa habitua-se a esperar as coisas que lhe dizem para esperar. Também achei que o facto de Hakim ter um nome árabe, como Barack Hussein Obama, lhe trouxesse um certa segurança para o seu futuro. Mas para Hakim, o negro, nenhuma destas coisas lhe veio imediatamente à ideia. A primeira coisa de que se lembrou de dizer não foi sobre a sua raça nem sobre o seu nome; foi que ele e Obama eram da mesma cidade. Essa normalidade, enquanto coisa mais simples do que mundo, deixou-me sem resposta. Fiz então a coisa do costume: perguntei a Hakim se estava optimista. Ele fugiu à questão: “O que eu gosto em Obama é que ele parece alguém que pensa nas coisas. Comparado com George W. Bush, seria uma novidade.”

One thought to “Sr. South Side ou Dr. Hyde Park”

  • Ricardo (Arrifana)

    Acho que concordo que as pessoas se encontram optimistas intimamente, mas muitas delas receosas. Receosas por não controlarem um factor humano que se espera estar radicado, e em um mundo perfeito deveria estar, mas na dura realidade das nossas vidas poderá ser decisivo, que é o facto de muitos americanos não quererem ser liderados por um presidente presidente afro-americano de descendência muçulmana, isto porque será sempre mais fácil mentir do que assumir e expor esses seus sentimentos.

    P.S. Tenho acompanhado a tua evolução em termos de comentários televisivos e devo dizer que têm tido bastante coerência e têm vindo a melhorar em termos de qualidade.

    Abraço,

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