|Do arquivo Público 02.11.2017| Sempre que ouço as últimas notícias sobre a questão catalã preocupo-me pelos catalães, por Espanha, pela nossa península e pela Europa. Mas há um nervoso miudinho também pelos amigos que tenho de ambos os lados e por temer que o vórtice que toma conta das sociedades nestes momentos os leve também a eles.

Esse momento chegou. Um dos oito ministros catalães agora presos em Madrid é um grande amigo dos tempos do Parlamento Europeu, Raul Romeva i Rueda, conselheiro de relações exteriores da Catalunha. Um amigo que se tinha retirado da política para regressar a Barcelona, estar mais tempo com os filhos, ajudar a mulher na sua livraria. Um amigo que nasceu em Madrid, não é nacionalista e muito menos anti-espanhol. O amigo com quem fundei o LEFT Caucus, fórum progressista no Parlamento Europeu, e que me chamou para ser membro da Comissão de Direitos das Mulheres, onde ele já era um dos poucos homens feministas quando isso era coisa rara naquela casa. Um ativista de terreno que trabalhou no programa de Educação para a Paz da UNESCO no pós-guerra da Bósnia e Herzegovina. Alguém que está “nisto” apenas pelas suas ideias, que defendeu sempre pacífica e democraticamente. E que agora se arrisca a uma pena de 30 anos de prisão pelo crime de rebelião — deixar de aceitar a tutela do estado espanhol — que aparentemente é muito pior para alguns políticos e juízes de Madrid do que os roubos e a corrupção do PP ou de membros da família real espanhola.

Outros dos presos terão também os seus percursos de vida, o seu orgulho e as suas ideias.

E do lado de Madrid também há gente assim, com traços admiráveis muitos deles, e a alguns conheço-os bem. Se falo do meu amigoo é por achar que se lhe deve um tratamento especial, que ele aliás recusa — foi tranquilo apresentar-se às autoridades, e sempre se disse preparado para todas as consequências que pudesse sofrer pelas suas decisões. É para enfatizar o mesmo que se poderia dizer de todos: que têm família, amigos e ideias em que acreditam. É sempre assim nestes momentos da história de Espanha e da Europa: são os idealistas que sofrem, e não aqueles que se encheram de dinheiro através da política e se puseram ao fresco antes das coisas darem para o torto.

Julgávamos que esse passado da Europa estava encerrado. Mas está visto que em Espanha — do lado da Catalunha e do lado de Madrid — ninguém sabe encontrar o travão para este descontrole. Agora estamos numa nova fase: a retaliação por retaliações. O governo catalão cometeu, a meu ver, um erro ao não ter ido para eleições na semana passada. O governo de Espanha está a cometer, a meu ver, um erro maior em querer esmagar impiedosamente todos os que lhe fizeram frente. E de erro maior em erro maior iremos?

A partir daqui a Europa já não pode ficar calada. A Europa construiu-se precisamente para que não voltassem os tempos em que se criminalizava a política não-violenta, em que os adversários tinham de ser esmagados e humilhados, em que as posições se extremavam até ao ponto em que se exigiam vitórias absolutas para derrotas absolutas. A questão catalã já está irremediavelmente europeízada. O próprio governo espanhol o admite quando solicita um mandado de captura europeu para Carles Puigdemont. É então chegada a hora das instituições europeias tomarem posição pela desescalada verbal, política e judicial na Espanha e na Catalunha. É o momento de exigir que ambos os lados dêem uma pequena abertura política, o suficiente apenas para permitir que se sentem à mesa. É o momento de a União deixar claro que oferecerá os seus bons préstimos a ambos os lados mas que, em caso de rejeição desses bons préstimos, não permitirá que o seu apoio político seja invocado para uma deriva autoritária.

Se não isto, resta o quê? Admitimos que na UE de hoje se pode ir preso por 30 anos por defender uma causa pacífica e democrática, concorde-se ou não com ela? Ou admitimos que a soberania nacional espanhola é tão inviolável que até se permite que ela envergonhe a Europa e, quem sabe, a encaminhe para uma tragédia pela segunda vez em menos de um século?

A Europa que recusa o pior do seu passado tem todo o direito de exigir à Espanha e à Catalunha: basta. Não há solução repressiva para um problema político. Estabeleçam um roteiro, sentem-se à mesa, resolvam o problema constitucional espanhol para as próximas décadas. Não arrastem a Europa para o vórtice do sectarismo. Respeitem os valores de democracia, liberdade e pluralismo que prometeram cumprir ao fazer parte da União Europeia.

(Crónica publicada no jornal Público em 02 de novembro de 2017)

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