O olhar de Obama é, primeiro instintivamente e depois cultivadamente, o olhar antropológico.

Na mensagem que enviou aos iranianos pelo Nowruz — o ano novo persa — Barack Obama quis assinalar o que havia de comum entre os Irão e os EUA dizendo algo como isto: “vocês celebram esta festa da mesma maneira que nós fazemos com os nossos feriados, recebendo a família e os amigos, trocando presentes e histórias, e olhando para o futuro com um sentido de renovação”.

Parece estupidamente simples, mesmo ingénuo. Mas nos últimos anos, o Irão tem feito parte do “Eixo do Mal” como os EUA têm sido o “Grande Satã”; o olhar recíproco entre os dois países não passava disto. Qualquer político sabe que também há interesses mútuos, como a necessidade que estabilizar o Afeganistão. Obama não começou por aí: ele não é um qualquer político.

Aquilo em que nos formámos é muitas vezes menos importante do que a maneira como fomos formados. Ora, antes de ser jurista e político, Obama foi criado por uma mãe antropóloga. Isto é evidente: qualquer pessoa que tenha o prazer de ler os seus dois livros poderá detectar nele essa influência fundamental, a que se acrescentou uma infância passada na Indonésia e a própria experiência de ser sempre “o outro” junto de negros e brancos. O olhar de Obama é, primeiro instintivamente e depois cultivadamente, o olhar antropológico. Como vemos no exemplo acima, ele é o observador-participante que procura aquilo que de elementar se esconde por detrás de rituais, denominações e realidades complexas.

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Isto é tanto mais curioso quanto o olhar antropológico foi talvez o mais vilipendiado na política dos últimos anos, por causa do seu  “relativismo”. É verdade que muita gente olha para as diferenças de cultura como forma de compartimentar e espartilhar a humanidade, como se os povos se pudessem selar hermeticamente. Na verdade, chama-se a isso “essencialismo”. Mas o olhar que procura entender os outros colocando-se no lugar deles faz parte de um relativismo que une, no qual as próprias diferenças são relativas, ou seja, diferenças de grau mais que de tipo.

Na sua mensagem, por exemplo, Obama referiu-se à “República Islâmica do Irão”, o que em muitos sectores dos EUA é considerado uma capitulação. Para os neoconservadores não existe tal coisa e há que ser inflexível nessa opinião, pois para eles inflexibilidade é força. Obama parte de outro pressuposto: respeitar o outro implica reconhecer-lhe o direito a denominar-se e isso não diminui em nada a nossa auto-confiança. Só quem se conhece bem a si mesmo se arrisca a falar a linguagem do outro.

Há que reconhecer que Obama ainda não resolveu nada de fundamental, mas às vezes dá gosto vê-lo desatar estes pequenos nós cegos. Na sua visita à Turquia, uma estudante perguntou-lhe sobre a oposição de Sarkozy à entrada do país na União Europeia e o problema de considerar ou não que houve um genocídio dos arménios por parte dos turcos — pequenas questões que são como dinamite política para políticos banais. Obama desenvencilhou-se tranquilamente e demonstrou como a sua flexibilidade rapidamente se converte numa arma de força e não de fraqueza.

A resposta sobre Sarkozy e a Europa foi particularmente elegante e demonstrativa: “É verdade que os EUA não fazem parte da Europa e não nos cabe tomar uma decisão sobre a entrada da Turquia. Mas isso não me impede de ter opinião. Reparei que durante os últimos anos os europeus também não têm sido tímidos ao dar opiniões sobre o que os EUA deveriam ou não fazer. Não vejo mal nenhum em poder fazer o mesmo.”

Touché, senhor antropólogo.

[do Público]

One thought to “O filho da antropóloga”

  • DevilAdvocate

    Por gestos como este e outros, por pequenos e grandes nós cegos que vão sendo paulatinamente desatados, Obama é o homem certo no local e tempo certos.
    Um novo caminho para o Mundo pode estar a começar…E a fé que ele transmite às pessoas em dias melhores é realmente desarmante e contagiante, o que aliado à sua inteligência, capacidade de adaptação e diplomacia são trunfos num cenário político mundial cada vez mais “quadrado”.
    Sou fã dos seus textos (que são uma das poucas razões que me levam a comprar a Blitz…) e foi com muito gosto que encontrei o seu blog.
    É uma inspiração para quem, como eu, gosta de escrever e de ler textos atentos, inteligentes e bem escritos.
    Obrigado.

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