Se o debate na União Europeia fosse sobre como nos preparamos para o futuro, já teríamos saído da crise há muito tempo, não só porque teríamos um plano conjunto que interessasse tantos a uns como a outros, como sobretudo facilmente conquistaríamos o apoio do resto do mundo. A Europa tem recursos suficientes, humanos e materiais, para tornar um seu plano de recuperação credível ao mundo e apetecível aos seus investidores.

Em “O Visconde cortado ao meio”, de Italo Calvino, um homem vai para a guerra no centro da Europa e apanha com uma bala de canhão no peito que o racha ao meio. Uma metade é apanhada por monges cristãos, outra por nigromantes turcos, e ambas sobrevivem.

Contei essa história no meu livro sobre “A Ironia do Projeto Europeu” e repito-a aqui porque me parece uma das melhores descrições do problema que estamos a viver na União Europeia hoje

. No livro de Calvino, as duas metades do protagonista regressam à sua terra, em Itália, uma de cada vez, e não trazem apenas metade do corpo cada uma. Trazem também metade da personalidade; a metade esquerda é virtuosa, a metade direita é viciosa. E muito rapidamente os habitantes da aldeia de apercebem de que ambas as metades são insuportáveis: que, mais do que viver com a bondade de um ou a maldade do outro, o que torna impossível a vida na aldeia é o facto de cada uma das metades estar convencida de que tem toda a razão, e de que a outra metade está tão errada que deve ser aniquilada.

Calvino escreveu esta história quando a Europa foi dividida pela cortina de ferro, e não lhe foi alheio, ele que era comunista em afastamento do partido, que as suas metades da Europa se comportavam como as suas metades do seu protagonista: cada uma atribuindo à outra todos os vícios e reclamando para si todas as virtudes. Mais do que uma avaliação do interesse mútuo das partes em conflito, a causa do bloqueio residia a um nível profundo, psicológico, de uma atribuição de motivos sobre quem tem a culpa, quem “começou” o problema, quem foi prejudicado e quem deve ser castigado.

Isso aconteceu na Europa diversas vezes e agora está a acontecer de novo na divisão entre os países excedentários e os países deficitários. Se o debate na União Europeia fosse sobre como nos preparamos para o futuro, já teríamos saído da crise há muito tempo, não só porque teríamos um plano conjunto que interessasse tantos a uns como a outros, como sobretudo facilmente conquistaríamos o apoio do resto do mundo. A Europa tem recursos suficientes, humanos e materiais, para tornar um seu plano de recuperação credível ao mundo e apetecível aos seus investidores.

Mas não é isso que nos está a impedir de sair da crise. O que nos está a impedir é a perceção de quem é “preguiçoso” e quem é “autoritário”, quem viveu “acima das suas possibilidades” e quem viveu “à custa da miséria dos outros”, etc. Aqui, ao contrário da célebre máxima, quem manda não “é a economia, estúpido“. É a cultura, a mundividência e as diferenças de identidade. Mas quando vemos, por exemplo, o comportamento de torcida de futebol daqueles que em Portugal vibram com a inflexibilidade do Sr. Schaeuble na Alemanha, percebemos que não é o interesse próprio ou nacional que os move: é a satisfação psicológica de quem vê os seus preconceitos confirmados.

Mas também por outro lado temos visto em toda a Europa, incluindo na Alemanha,  uma atenção redobrada ao que diz Varoufakis, a ponto de este estar a ganhar a batalha da opinião pública. É que pela primeira vez vemos alguém tentar fazer um diálogo para toda a Europa.

Os problemas de identidade resolvem-se assim: construindo uma identidade comum.

(Crónica publicada no jornal Público em 09 de Fevereiro de 2015)

One thought to “É a cultura, estúpido!”

  • Maria Mattos

    Mas onde é que é possível ter um plano que interesse a uns e a outros, quando estamos perante a maior diversidade de povos dentro de uma união que foi criada esquecendo precisamente as diferenças culturais, religiosas, políticas e sociais de cada País? Criaram o absurdo, naquela tentativa estúpida de abolir diferenças, achando que ia funcionar. Utopia. E portanto como se está a ver não funciona e nunca funcionará, porque não será possível a vinte e poucos povos com diferenças vincadas, cada um herdeiro da história fundadora da sua nação, abolir diferenças e criar um suposto U.S.E. É uma utopia e tudo o que vivemos actualmente está a mostrar isso mesmo.
    A não ser que se caminhe para uma ditadura de burocratas que vão criando leis, decretos e regulamentos aplicáveis a todos os povos, esquecendo que cada um tem a sua identidade própria.
    Não venham com a identidade comum. Poderá haver num ou noutro ponto, não naquilo que já nos fazem há anos, impondo absurdos que vão tentando destruir a identidade de cada povo.
    Só que a identidade de cada povo não é destruida por decreto, bem como a criação de uma identidade comum também não o será.
    Utopias.

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